Medo

Não foi a primeira vez, nem será a última. Conversa à volta de uma funjada. E o medo. Medo de falar sobre o próprio medo. Confuso? Não é.

Não consigo (nem quero) deixar de me indignar pelo lavar de mãos que muitos de nós fazemos constantemente. "Que posso fazer eu quando o povo é analfabeto?", "Que vou dizer quando sou funcionário do Estado?", "Aqui não se pode falar demais". Mentiras. Cobardia. Arrogância. Falta de compromisso. Fuga às responsabilidades dessa cidadania que continuarei a exigir de todos, porque ela não é pertença de uns quantos a quem, ainda por cima, chamam de "loucos" por falarem em voz alta.

Vivemos numa ilusão de que está tudo bem, porque a fuba é abundante e a cerveja corre solta. Estamos no paraíso, afinal. "Aqui é preciso é viver bem". E pronto. Finge-se que não tropeçamos todos os dias numa cidade feita esgoto a céu aberto (e isto não é metáfora), que o nosso palácio já nem telhados de vidro tem, estão todos feito cacos, e que os outros, esse "povo analfabeto", nem existe. Porque "são sujos", "brutos" e escondem-se em musseques onde ninguém de "bom tom" põe os pés. Somos o quê senão povo? Príncipes?

E fala-se do pensamento único. Que todos abominam mas que a maioria engole, porque pensar pela própria cabeça continua a ser uma afronta. Apoiam o desvio dos "cânones", quando muitos deles, gente com responsabilidade na formação de outros, não o fazem, demitindo-se da sua mais que obrigação de rejeitarem (ou pelo menos questionarem) todas as linhas que lhes impõem, quanto mais não seja por obrigação e dignidade intelectual. E refutá-las ao vivo, in loco, e não depois de umas cervejas inconsequentes.

Sinceramente, tamanha desresponsabilização deixa-me, mais que revoltado, triste. Porque o MEDO impera e alimenta uma ridícula auto-censura, porque o MEDO é assumido como a fórmula para se sobreviver, e porque, ao encararmos este MEDO como algo normal, arriscamo-nos a transformar-nos, de uma vez por todas, em autómatos do regime que parece que nos quer assim - bêbados, apáticos, fúteis e inúteis.

Pois bem, camaradas, sou uma migalha insignificante e a minha opinião não conta para nada. E escrevo isto mais para mim do que com esperança que alguém leia esta treta. Ninguém aqui tem jeito para ser herói ou mártir. Mas tenho o meu lugar como cidadão deste país do qual não abdico nem desisto, embora nem sempre saiba como o fazer e tornar força efectiva. Interessa-vos isto para alguma coisa? Talvez não. Mas por mais doses gigantes de frustração que nos tentem fazer engolir para nos quebrar, eu recuso, com toda a força que às vezes não tenho, deixar-me dominar por esse medo, coisa abstracta e se calhar injustificável que, no fundo, é o vosso próprio pavor - rio que corre solto debaixo dessa camada dourada a que chamam poder, mas que não é mais que verniz tosco com cor de ilusão. Percebo, por isso, o VOSSO medo.

Comentários

velu disse…
OBRIGADA PEDRO POR ESTE TEXTO! GOSTEI DE LER! BEIJOCAS.
bebexi disse…
Pedro, obrigada por este texto, escrito , provavelmente, a pensar em Angola , mas aplicável ao mundo todo. Que todos contribuamos para a sua divulgação e que a sua leitura abra os olhos e a mente a muita gente.
Pedro Cardoso disse…
Obrigado pelos comentários nha guentis. De facto, de outra forma, isto também se pode aplicar a Cabo Verde. Tenho um post sobre isso: http://mukuarimi.blogspot.com/2009/09/cabo-verde-ilhas-no-centro-do-mundo.html

Mantenhas a tud'nhos.
Kukinha disse…
Bali Pedrito

Esse MEDO conhecido de todos nós e aceite pela maioria como capa do socialmente correcto é que nos deixa apáticos como povo, a reclamar em mesas de bar e a suspirar quando se diz "ahhh já sabes como aqui é..." como se nada pudesse se mudar.
Que pelo menos um ou dois que sejam leiam este texto e ousem como poucos não destruir a machadadas o medo de imediato mas enfrentá-lo e ultrapassá-lo.
Bjs
Siza disse…
Oi Mano,

Queria muito saber escrever tão bem assim como tu escreves. queria saber escrever para dizer que concordo contigo e outras coisas mais. Mas tenho medo de fazer feio (lá está o medo).

Estamos tão acostumados ao medo (mesmo que na mairia das vezes não o saibamos descrever, para dizer o que de facto nos dá medo) que deixamos de fazer o que achamos certo, ou pelo menos dizer o que pensamos.

Me parece que falta o sentido do colectivismo. Não percebemos que é no bem do colectivo que os problemas do individuo se resolverão. Que precisamos de instituições fortes e não de individuos fortes, para sermos de facto cidadãos. Por outro lado, parece ser mais fácil ter medo, do que desafia -lo (o medo) e ^fazer alguma coisa, mesmo que seja, escrever como tu fazes.

Sei lá, no final das contas do que é que devemos ter? De pensar e falar ou de nos transformarmos em ratos nesse esgoto a céu aberto (e isto não é metáfora)

Bjs
P.S: Continue a escrever, alguns de nós lê e se importa!
Siza disse…
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