Cobaias de Deus

"Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus"

"Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco
Desse hospital maquiavélico
Meu pai e minha mãe, eu estou com medo
Porque eles vão deixar a sorte me levar (...)"

"Nós, as cobaias, vivemos muito sós
Por isso, Deus, tem pena, e nos põe na cadeia
E nos faz cantar, dentro de uma cadeia (...)"

Trechos de "Cobaias de Deus" (Cazuza/Ângela Rô Rô)


30 anos depois, José Eduardo dos Santos continua na colina de S. José, onde celebrará mais um aniversário de poder. Muito discretamente, claro está, que isto de se ser governante em África ao estilo ad aeternum já não fica muito bem a quem se quer afirmar como um líder democrático.

Ele, o Excelentíssimo Presidente da República, Engenheiro, Arquitecto da Paz, Timoneiro da Reconstrução Nacional, Presidente do MPLA, Chefe do Governo, Comandante em Chefe das Forças Armadas de Angola, o insígne, o omnipotente, o intocável, o impenetrável (aceitam-se contribuições de epítetos). Ele, o nosso mais que tudo, que decide a bel-prazer o nosso futuro, que empurra os convertidos-sem-opção numa direcção única, que alimenta o culto de si mesmo na celebração desta Igreja sem tecto em que Angola se tornou, plantada no meio de um deserto político onde o sol queima, as cobras rastejam e os lacraus se escondem na areia com o veneno em riste.

Trinta anos depois, vai experimentando em nós, os "seus" cidadãos-cobaias, os truques e fórmulas de um poder ganho passo a passo. A metodologia não é original, mas é eficaz. Na verdade, basta uma única palavra para desencadear reacções de todo o género na enorme massa de governados que vêem, de súbito, deitados por terra, todos os consensos, ideias e horizontes construídos durante os períodos de silêncio de José Eduardo dos Santos. E tamanha demonstração de poder resulta, de facto. Para muitas correntes mornas e conformadas, é Ele o tão propalado e único garante da nossa estabilidade, a razão pela qual o país não se desmorona como um baralho de cartas. Sobre Ele assentam os alicerces de Angola. Se Ele estremecer, estremecemos; se Ele ruir, ruimos. Como ousar pô-lo em causa, se na verdade, um único piscar dos Seus olhos faz-nos ficar completamente desabaratados, à toa, sem rumo?

O último episódio da novela das presidenciais é mais uma prova que vivemos encarcerados num autêntico laboratório sociológico em que, sentado no cadeirão de cientista, Zédu nos observa e tira apontamentos, coadjuvado pelos seus assistentes do partido. Ao entrar em confronto com as declarações que saltavam cá para fora, directamente do interior do MPLA, sem aviso prévio o PR fez com que o que fosse deixasse de o ser. Bastou um comentário muito simples, dito como quem não quer a coisa à margem da conferência de imprensa conjunta com Jacob Zuma. As palavras, meias-ditas, meias por dizer, foram de uma eficácia impressionante: montaram em torno das presidenciais uma intensa aura de "e agora?" que abriu o desejado espaço à especulação desregrada. Uma declaração, só. E o país entrou em ebulição.

Mas a tragicomédia atingiria o clímax só depois, quando Bornito de Sousa veio dar o dito pelo não dito, justificar o injustificável, num impressionante e descarado jogo de palavras - um verdadeiro acto de desprezo pela inteligência dos angolanos e pela dignidade política do próprio MPLA. Como dizia um amigo, José Eduardo dos Santos quer inventar um novo sistema a que o MPLA tenta agora dar resposta, fazendo um rendilhado semântico e jurídico que corresponda aos desejos inquestionáveis do Chefe. De directas, passámos a indirectas-directas, ou directas-indirectas, ou a directas atípicas, uma nova fórmula made in Angola que ainda assim se chamam "directas", referência obrigatória dos futuros e atípicos compêndios juridicos.

E é assim que, vendo-nos mais uma vez feitos baratas tontas, o nosso PR se deve estar rir a bandeiras despregadas e a pensar "como sou poderoso". Enquanto a gargalhada sai solta, nós lá nos vamos tentando adequar, ou, na melhor das hipóteses, compreender este pensamento que muitos querem único e cristalizado.

Somos, assim, autênticas cobaias deste "Deus". Alerto que a terminologia "Deus" não é minha, mas de um amigo que, durante uma discussão à mesa de um restaurante, evitava a todo o custo, de uma forma quase irracional, dizer em voz alta "José Eduardo dos Santos". De cada vez que eu o fazia, olhava à nossa volta e pedia-me para calar. 30 anos depois, será isto respeito? Não, é medo. Porque estamos presos num tempo medieval, em que o Altíssimo é um ser inquestionável, que reprime, castiga e pune, e não alguém benigno e que vela por nós. E isto porquê? Às melhores respostas ofereço uma birra. Ou duas. Ou uma maratona daquelas fortes, para adormecermos de vez as nossas cabeças que, por estes dias, andam a pensar demasiado por si mesmas.

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