Flor

Morreu com um sorriso de palhaço pintado na cara e um coração ainda palpitante. Antes ainda, antes mesmo, calçou os sapatos vermelhos, salto alto afilado a furar o chão, antecipação do seu próprio enterro na vala comum dos sem nome. Também pôs baton, aquele violeta que um dia lhe deu a fama de “Flor”. De epíteto para epitáfio. Flor cravejada na pedra tumular imaginária. Mas tudo isto seria depois, só depois.

Neste momento ela sabia que era a última vez de tudo. Rezou um terço. Não porque fosse religiosa. Mas uma puta também reza. Avé-marias, glórias ao pai, salve-rainhas e pai-nossos regurgitados depois do último serviço onde provou o último, ultíssimo homem das suas coxas. Quis um orgasmo mas desconseguiu. Esse ficou-se mesmo pelo primeiro.

O homem bazou mas não pagou. “Fazer mais como?”, pensou, mais por força de hábito de o pensar, do que por ralação. Levantou-se nua. Pôs a girar uma balada dos kotas. “Panguiami uafua...” – “o meu amigo morreu”. A viagem lenta na escala musical com sabor a noites do trópico austral reavivou silêncios comprados, silêncios fingidos, silêncios inviolados. As paredes do quarto entraram em ebulição. Memórias a todo o vapor.

Mas disso Flor nada sabia. Por isso limitou-se a dançar. Não dançou sozinha. Em abraço sem braços, um muxarico. Foi das poucas coisas que conseguiu trazer na fuga apressada de um planalto central atordoado pela guerra que estilhaçou de vez a paz podre. Na caminhada desde o seu Bairro de São João até à praia Morena, sempre na mão aquele pau de bater funje a que baptizou de “Tu”. Com ele preparou fuba, quando havia. A ele se abraçou em cada uma das noites que passou no mato, em fuga apressada. Com ele matou o bandido que numa noite húmida e sem aviso quis chorar nela as dores de homem-sem-mulher-há-bué. Um golpe na cabeça bastou. Mais morto menos morto, ninguém se importava. Eram tantos, todos os dias. Tal como o orgasmo, o morto da sua vida também se ficou pelo primeiro. Ela mesma seria o segundo, adivinhava-o nessa irracionalidade de pressentimento. Sorriu com a ideia.

Aumentou o volume do balada-do-amigo-morto-do-cantor. Apertou com força o “Tu”, como fazia durante as noites (quase todas) em que ele era o único fiel companheiro de cama. O corpo humano com contornos de pau seco e o pau seco com ares de humano dançavam agora quase em tarraxinha. Os restos de funje de milho colaram-se aos peitos nus de Flor. A luz da única lâmpada pendente do tecto descascado começou a vacilar até sumir por completo. O som calou-se. Ficaram a penumbra e os espíritos de sempre. Lá fora, os putos de rua gritavam, em bocas recheadas de “xé” e de “filho da puta”. Não ligou, nada daquilo lhe dizia respeito. Ela era puta, a sua mãe não.

Deitou o “Tu” no colchão podre e afagou-lhe a base. Foi então que olhou o prostíbulo em jeito de despedida. Com nenhuma saudade, com alguma luz, com muitos berros dos miúdos a entrar pela janela daquela casa degradada da baixa de Luanda. Paredes podres, soalho de madeira podre, a decadência em estado maduro. Também o ar era sujo. À medida que o olhar se prolongava e a noite avançava, ele passou do castanho para o cinzento até se decidir pelo negro. A algazarra lá fora continuava. Também negras, as vozes. Bolões de putos que se encontravam e degladiavam. Já nem ligava. “Luanda tem limite?”, interrogou-se sem querer. Pensava que sim, quando aqui chegou, há muito anos, com os carimbos de “refugiada”, “deslocada”, “desgraçada” e “paiada” estampados no destino. “Por isso virei puta – tinha etiquetas até nas orelhas, como as vacas”, dizia em jeito de brincadeira séria, quando lhe perguntavam a história da sua vida. Mas agora tinha dúvidas. Sempre que pensava que não dava mais, que tudo ia rebentar, a cidade-elástico esticava um pouco mais e o equilíbrio mantinha-se, sabe-se lá como. “Não, Luanda não tem limite”, decidiu-se. Os gritos, lá fora, viraram guturais.

Tremeu. Na escuridão total de si e do quarto, ela tremeu. Não se ouviram chocalhos, antes o silêncio de um filme mudo sobre uma qualquer Nova Iorque trepidante. O corpo arrepiou-se. Pele mulata, cara amarrotada, carapinha curta e mal amanhada, olhos negros e baços, bunda arrebitada, seios-penduricalhos, três décadas dessincronizadas de carne em tremeliques involuntários. “Como as vacas loucas”, gemeu. O último esgar.

E foi então: Flor nua, Flor crua, com ecos de planalto na cabeça, as queimadas no horizonte das noites escuras e o caminho sempre distante, sempre comprido, menos possível (“tratatatata!!!”, rugiu uma aká, lá fora). E o caminho em chamas, o caminho em bombas, o caminho em nada (“tratatatata!!”). E o mato, o mato, as colinas suaves do planalto, o rugido, os homens, as crianças, o homem com o cérebro de fora, que caminhava, o planalto, o fogo, o vermelho, o amarelo, o laranja, laranjas ácidas que atiçavam a sede, e o caminho, o caminhar (“tratatatata!!”), os caminhantes em manada como as vacas, vacas como ela, que se tornariam em vacas como ela, e o “Tu” borrado de funje de milho, e o homem morto, e o caminho, o caminho, o caminho, e o cheiro a mar vindo das terras de Benguela, cidade prometida que ficava no fim do caminho, o caminho, o caminho do negro, e a montanha tornada morro, e o caminho e Benguela, e a estrada, e o monte de restos humanos, kazumbis e o caminho e o final, o final do caminho, as areias da praia, Morena como ela, Praia Morena debaixo da chuva de Verão. Final da caminhada, início de outro caminho (“tratatatata!!”). De camião, a pé, Canjala perigosa (“tra”), Sumbe (“trata”), Kuanza (“tratata”), Luanda (“tratatatata!!”). E o caminho, sempre o caminho, agora de pernas abertas em muceque podre do centro, sentença da capital. E o caminho no fim, o fim do caminho, o fim. “Agora”, pensou, “agora o fim do caminho”. Coração em síncope, rubor em face negra, a escuridão (“tratatatata!!”) do prostíbulo.

Em transe e passos trôpegos calçou os sapatos vermelhos, salto alto afilado a querer furar o chão. “Tratatatatatata!!”. Pegou no batôn violeta. “Baza muadiê, eles estão aí!!”. Com mãos trémulas riscou os lábios e a face. “Baza, caralho, corre, vão nos bondar!!” Baton em movimento apressado de bastidor de um circo quase a começar. “Tratatatata!!”. Parou em frente à janela sem vidros. “Tratatatatatata!!” Inspirou. “Puuummmm!!...” Suspirou. A bala perdida cravada no peito. Fechou os olhos e morreu. Com um sorriso de palhaço pintado na cara e um coração ainda palpitante.


Texto de ficção que escrevi em Junho de 2007, inicialmente publicado em cidadepossivel.blogspot.com

Comentários

Ju Borges disse…
Lindo texto.
Beta disse…
gosto taaaaanto desse texto!
beijo
Minhokinha disse…
Breathtaking! Genuínos Parabéns, Pedro!
Pedro Cardoso disse…
Obrigado pelos comentários. De facto, dedico-me a escrever, dia após dia, o "real". E esqueço-me que a "ficção" é um caminho. A confusão está nas fronteiras entre um e outro... Abraços.
Pedro Cardoso disse…
Este comentário foi removido pelo autor.

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