Mamã Muxima rogai por nós

Relatar a procissão da Nossa Senhora da Muxima a partir de uma esquadra da polícia não é propriamente normal. Mas foi o que aconteceu no ano passado, quando diligentes agentes da polícia à paisana me pediram para os acompanhar, no exacto momento em que o andor da santa começava a percorrer as ruelas da vila. Motivo: averiguações.

A história começou quando estava a jantar numa das barracas. Aparece um homem que pede para falar comigo. Leva-me a outros três "companheiros", que logo dizem que são polícias à paisana. Mostram-me o distintivo e pedem-me para os acompanhar.

Até ali estava tranquilo, mas estava dado o tiro de partida para um dos episódios mais revoltantes da minha ainda breve carreira profissional. Na esquadra, pedem-me o passe do jornal, que não tinha, embora lhes tenha mostrado o meu nome na ficha técnica do NJ. Fui logo taxado como suspeito de alguma coisa que ainda hoje não consegui perceber o quê, e remetido para um banco corrido, de madeira, encostado a uma parede suja no fundo da esquadra. Pedem-me então os dados pessoais, espantam-se quando informo que sou angolano e que tenho a idade que tenho. E dizem que me vão prender.

O momento era estranho, porque surreal. Fora da esquadra, vivia-se o clímax da procissão, o êxtase, os cânticos, as milhares de velas a penetrar a noite, a euforia, as rezas, o Bem, Deus. E eu ali dentro, com uma raiva crescente que sabia que tinha que conter, perante brutamontes que insistiam em humilhar-me verbalmente, e em criar aquele ambiente de tensão e de "estás lixado", para deixar um tipo ainda mais nervoso. Enquanto dava os nomes dos meus pais a um agente que mal sabia escrever, a Virgem passa em frente à esquadra. A porta estava aberta. Ela entra pela esquerda do buraco negro da entrada, percorre-o, sai pela direita. E o polícia chama-me a atenção.

Entretanto, os contactos com a direcção do jornal, que já abordara altos elementos da Polícia Nacional, começaram a surtir efeito. Aparece um responsável da polícia do Bengo, supostamente ligado à área da comunicação social, que exige que mostre tudo, rigorosamente tudo o que tenho no meu gravador, o que aumentou ainda mais o sentimento de nojo, raiva e indignação, que tive, mais uma vez, que engolir em seco. Com o aparelho encostado ao ouvido, passa faixa por faixa para concluir, numa "comunicação" a outro colega, que "não tem nada". Nada o quê?

Passado pouco tempo (mas horas depois de ter sido interceptado), "libertaram-nos". A procissão já tinha acabado, o recinto estava praticamente deserto. Afoguei-me em cerveja antes de sairmos para Luanda.

Nunca me dirão os motivos que levaram a esta detenção. Mas posso imaginar, embora não tenha provas. Não os escrevo aqui para não me acusarem depois de calúnia e difamação, mas apenas digo que o que aconteceu foi, com 100% de segurança, um autêntico e grosseiro atentado (mais um) à liberdade de imprensa e de expressão em Angola. Ao ir à Muxima, apenas entrei no covil do lobo.



Comentários

Anónimo disse…
De todos os teus trabalhos que já li, este é o que mais me impressionou. É um facto isolado (a detenção) que acontece fora do principal motivo de reportagem (a Peregrinação) que o repórter, perfeitamente, casou. Foi uma «maldição» que enriqueceu a reportagem.

Álvaro Victória

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