Rio angolano


Há uma dinâmica angolana bastante interessante aqui no Rio de Janeiro. Quando cheguei, há uma semana, do outro lado da baía de Guanabara recebeu-me Marta Lança, jornalista portuguesa intimamente ligada a Angola. Um dia depois, saí a tomar umas birras com Keita Mayanda, rapper luandense, aqui de férias. Mais tarde apareceu Ariel de Bigault. Na altura, esta realizadora e produtora cultural francesa, que tem uma vasta obra sobre Angola, estava de passagem pelo Rio, a caminho de Salvador.

No sábado, dia em que chegou Roberta, paulistana que viveu em Luanda, um jantar em casa de Sérgio Afonso, fotógrafo e cineasta angolano que aqui vive há dois anos. Ontem, encontro com Antónia Onofre, jornalista benguelense que passou pelo Rio a caminho do Chile, para um encontro de jornalismo. Pelo meio, telefonemas para Ondjaki, que também aqui mora, e conversas via skype com Agualusa, que fez do Rio de Janeiro uma segunda casa.

Com a cidade como pano de fundo, as discussões sobre Angola. As mesmas, mas à distância, o que permite olhar o país de outra forma. Os problemas, as comparações com o Brasil, as novas ideias e projectos que se querem aplicar quando voltarmos à Banda. A sensação mais real da loucura que são as nossas rotinas e limitações em Luanda. E aquela tirada comum e inevitável, em comparação um tanto ou quanto simplista: "aqui, até a favela tem energia".

Conversas também sobre representações de África que abundam no Brasil - o continente "negro" encarado como um único país, onde vivemos no meio dos animais selvagens e em cima das árvores. A África mítica a que se agarram (até) académicos e os movimentos de reinvindicação dos direitos dos negros brasileiros. Aqui, muita gente que deveria estar muito melhor informada, assume África como a mesma de há 500 anos, cristalizada numa equação ao estilo "tribo e leões, africanos bons e colonos maus". Evita-se a África de hoje, a África real, fruto de todos os processos históricos - desastrosos ou libertadores, externos ou internos - que a varreram desde sempre.

Numa tentativa de afirmação de identidades, muitos afro-brasileiros agarram-se a esta África ancestral para se encontrarem e imporem em peito feito contra o racismo que aqui grassa, mais ou menos camufladamente. As tribos "originais" (o que quer que isso seja), os sobas, os reis e a "mamã África" surgem como uma espécie de tábua de salvação identitária para quem se sente (e é, na verdade) continuamente agredido e excluído.

Os exemplos são vários. Como o que vende Salvador como uma segunda África. Teoria que quem vem de Luanda e passa um tempo na capital baiana não compra nem no arreiou. A colagem é absolutamente forçada. Existem traços comuns nos sons, na gastronomia, em alguns traços fisionómicos e posturas, é certo, mas são ténues e difusos, reminiscências do passado, misturadas com algo novo. Não são africanos, são outra coisa, já - brasileiros.

O Brasil não é africano, nem europeu, nem asiático. O Brasil é o Brasil, e ponto final. E este deveria ser o ponto de partida para qualquer discussão sobre identidade do brasileiro, quer seja índio, "afro", "euro" ou "japa". Não quero mandar boca em casa alheia, mas vir de África permite-me ter uma opinião. E ao agarrarem-se a algo que já não existe, a não ser na cartilha identitária que eles próprios compõem, os afro-brasileiros correm o sério risco de se confundirem e de se perderem ainda mais - ou não fossem muitos dos seus fundamentos meras derivações de equívocos em que insistem em acreditar.

Comentários

Ju Borges disse…
Pedro, concordo com tudo isso do seu texto. É nessa tecla que eu venho batendo já há algum tempo. Tás a ver?

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