Teatro Avenida



Teatro Avenida, Avenida de Mayo, 1222. A minha porta de entrada para Buenos Aires. Depois de um longo caminho no “Crucero del Norte” que me trouxe, ao longo de pesadas 36 horas, de São Paulo até à capital argentina. Paraná de oeste a leste com as plantações de soja que nunca mais acabam, Foz do Iguaçu com fronteira comum a três países, o adeus ao Brasil onde passei três meses. Logo Misiones, Corrientes e Entre Rios com a noite, e o destino final ao nascer do dia. 21 de Maio.

Teatro Avenida e um encontro, seis anos depois. Gonzalo. Amigo grande dos tempos de Santiago de Compostela. Nos primeiros croissants num dos muitos cafés acolhedores da cidade, o desfilar das memórias daquele ano galeglo e incrível em que tudo foi possível. O reafirmar de uma amizade que não se esgotou nem no tempo, nem na distância, e que, mais importante, não ficou retida lá atrás.

Gonzalo percurssionista e músico profissional de vibrafone e marimba, elemento de orquestras que enchem grandes salas da capital argentina, centro vibrante de cultura. A Buenos Aires de Gonzalo e de Jazmin, a sua namorada, activista severa, é a que estou a conhecer. Polvilhada com longas conversas noite dentro, na sua pequena casa octogenária da calle Blanco Encalada. Luz quente e rosada de três pequenos candeeiros e palavras sobre Argentina, Angola, política, memórias, música, cultura, História e mulheres.

A cidade. Altamente europeia no aspecto, no jeito de vestir e de andar. Cinzenta, triste. Melancólica e feminina. Ao mesmo tempo, com uma vibração diferente. América Latina que não se reconhece a si mesma, presa que está numa longínqua raiz europeia que supostamente a valoriza e diferencia. Identidades cruzadas, no fundo.

Os edifícios elegantes do centro, os novos arranha-céus de gosto bastante, mas bastante duvidoso. San Telmo com a feira de antiguidades de domingo, antigo bairro negro da cidade, quando ainda os havia (os negros). La Boca, pobreza em jeito de cartão-postal pintado a cores vivas no lugar onde aportavam os imigrantes que fizeram este país como ele é. Centro turístico de excelência, com tudo o que de aborrecido isso tem.

Belgrano, Puerto Madero, La Recoleta e um cemitério monumental onde descansam todos os presidentes e personagens importantes e snobes. Importante ponto turístico também, mórbido até ao esqueleto. O bairro judeu onde, em 1994, um atentado matou dezenas de pessoas. Ao longo de uma das ruas, o nome da cada uma das vítimas, simbolizadas por árvores.

A cidade. Quadrada, das “cuadras” que tudo indicam e a todos orientam. O sotaque característico dos argentinos, em que o “ll” vira “ch”. Boludo, pelotudo, kilombo, chavon, guita, mina, pibe. Trocar o “tu” por “vos”, o “vosotros” por “ustedes”. Seis anos depois, mergulho de novo no espanhol que, afinal, não esqueci.

Comer o assado é ritual. Carne de todos os tipos e feitios, enchidos de todos os tipos e feitios, uma digestão pesada que ajuda a digerir o fernet, licor cá da banda feito de ervas, amargo adocicado por Coca Cola. Trazido da Europa pelos imigrantes.

Os ecos de Buenos Aires, que se tem vindo a mostrar uma espécie de laboratório político e social da América Latina. Lembranças de repressão, como a de 2001, depois da hecatombe financeira do país. Assembleias populares por todos os bairros, manifestações, perseguição, espionagem, mortes seleccionadas, o assassínio de um anjo que andava de bicicleta, imortalizado na música “El Ángel de la Bicicleta”.

O anjo - activista social que geria um "comedor" para crianças pobres, personagem identificado então pelas autoridades como agitador social. Antes de ser morto a sangue frio, gritou a frase que virou refrão de música e um ícone desses tempos: “bajen las armas/ que aquí solo hay pibes comiendo”. Morreu. Nos dias seguintes por toda a cidade a imagem de um anjo de bicicleta foi chapada nas paredes públicas. Sarampo de consciência. Não morreu. E virou mito.

As músicas. “Maria de los Buenos Aires”, ópera de Piazzola, no Centro Cultural Borges. A eterna Mercedes Sosa, que tanto adoro, e que aqui se projecta na memória e emoção colectivas. E que, afinal, era viciada em alta velocidade e em carros potentes. Sons. Zambas, chámame, tango e tango electrónico e o candombe uruguaio, que vem do outro lado do Rio de La Plata.

Histórias, muitas. Da "mania" das gentes da capital se acharem europeias, do virar de costas aos restantes povos da região. História feita de San Martin, libertador da América do Sul, juntamente com Bolívar, e de sobreviventes do Holocausto e dissidentes nazis que aqui encontraram porto seguro, ironicamente lado a lado. Da construcção da cidade, ou de imigrantes como o avô de Gonzalo, que chegou há 80 anos ao porto de Buenos Aires, vindo de Italia. A boina que trazia nesse dia, castanha clara, foi-me oferecida em mãos pelo Gonz, num gesto altamente simbólico, para mim.

Com uma boina octogenária, um cachecol gigante que a Jazmin me fez, e uma pulseira que ela trouxe de Jujui, no nordeste do país, alta montanha andina, e que me ofereceu, vou descubrindo tranquilamente Buenos Aires. Com um frio de Outono que me gela da cabeça aos pés.

Comentários

Beta disse…
estou vianjando contigo. Adoro tua inspiração.
beijo grande. segue curtindo.

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