Outono e Lo de Charly

Luz de Outono. Luz e frio de Outono na latitude da Cidade do Cabo, mas num outro lado do mundo. Buenos Aires com o acordeão de Chango Spasiuk. Chámame do norte e nordeste, Misiones. Sempre a música a dar um toque especial à coisa. É vício.

Nas ruas, os despojos das comemorações da Revolução de Maio, que há precisos 200 anos dava o mote para a independência argentina, seis anos depois. A libertação definitiva das “províncias unidas do sul” que o hino, obrigado por decreto, recorda todas as meias-noites nas rádios nacionais. Versão oficial ao estilo militar, versão (lindíssima) de Mercedes Sosa e Folkloristas, ou versão Charly Garcia.

Bicentenário e as ruas da capital federal, o microcentro copy-paste Espanha oitocentista, abarrotadas de gente. Altos e menos altos brancos-europeus, baixos e de olhos rasgados-asiáticos, baixos e menos baixos de pele curtida pelo sol e frio em traços indígenas. Gente de todo o tamanho e feitio a lembrar que a história desta terra é origem e mestiçagem.

Os descendentes dos escravos não se vêem. Não existem mais, ainda que há dois séculos 40% da população argentina fosse negra. Como vários povos índios, foram dizimados, mas numa campanha de esperança podre. Foram enviados para a frente das várias batalhas que moldaram a Argentina. Se regressassem vivos e inteiros, tornavam-se livres. Se não, paciência. Pois bem: ou não voltaram ou desapareceram do mapa. Eclipsaram-se. Argentina parida no sangue – dos negros, dos índios - um milhão de mortos em campanhas de deserto. Um país que agora se celebra.

O sangue também da ditadura. 30 mil mortos em sete anos de um dos regimes mais extremos da América Latina dos finais dos anos 70. Ainda hoje se condenam carrascos, velhos antes em prisão domiciliária dourada, e que vão terminar os dias na cadeia como qualquer criminoso. As feridas estão demasiado abertas, mas pelo menos tentam-se curar. Ao contrário do nosso Maio de 77, que poderá ter vitimado mais do dobro desta tragédia, mas que virou tabu de Estado. A ditadura argentina, dizia. E os valores da liberdade e resistência em noite de celebração nas vozes de intervenção que subiram ao palco.

Noite na avenida 9 de Julio, centríssimo de Buenos Aires, junto ao obelisco onde se ergueu pela primeira vez a bandeira argentina e que, por vezes, serve de pénis encamisado das campanhas de luta contra o SIDA. O aproveitamento político também da praxe de uma data de todos. Partidarização do aniversário de uma revolução, com campanhas do governo de Cristina Kirchner. A lembrar a nossa Banda. Versão mais light, mas igualmente nojenta e inadmissível.

Noite de Buenos Aires e da Argentina oficialmente comemorada. Propagandisticamente comemorada. Cerveja Quilmes e a parrillada do mítico “Lo de Charly” que, às 4 da manhã, já nao há. A festa passou. Os palcos da festa viram esqueleto de metal. A vida regressa, normal, à cidade do tango.

Comentários

kalunga disse…
Fixe ... como sempre, muito no teu - ainda mais apurado - estilo. Agora ainda mais refinado, sem as cedilhas !!! Fazia jeito um computador que pudesse cedilhar ... Mas dá para entender.
Parabéns, Pedro!
Pai
Ju Borges disse…
Pedro, to adorando observar como os seus textos emanam as mudanças que vão acontecendo em você à medida que o tempo passa.
Ta bonito o blog.
beijo enorme

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