Chega de saudade
O tempo não pára e a viagem também não. Amanhã saio de Salvador. Dois meses depois da minha chegada. Perguntam-me frequentemente o que fiz por aqui. Eu invento mil e uma coisas para não revelar que produzi zero.ponto.zero ao longo de todo este tempo. A quem não disse as coisas como elas eram, as minhas desculpas. Não era tanto para ocultar o que me atirariam à cara como inércia pura, mas para evitar perguntas a que não queria responder.
Mas não estive parado. Numa atitude puramente burguesa, e queimando parte das poupanças que tinha reservado para começar com a minha "vida adulta", repensei-me. Eu exposto em jeito de espelho. A pior crueldade que alguém pode fazer-se a si mesmo, talvez, mas absolutamente necessária. Cheguei a algumas conclusões. A mais importante: também eu tenho que ser uma prioridade, o que não tem acontecido nos últimos anos. Ainda que isso possa correponder a rupturas radicais.
Enquanto isso, vivo os meus últimos momentos de Salvador. Dia após dia fui-me integrando nesta cidade que se arrisca a ser (mais um) dos meus refúgios. A ela devo esta calma e tranquilidade que já não sentia há tanto tempo. Este lugar tem uma energia enorme a que sucumbi sem pestanejar.
Aqui há sorrisos apenas sorrisos, sem segundas intenções. E dei-me conta que Luanda me tornou hipócrita, ao achar que não há sorriso sem interesse, simpatia sem pedido subjacente. O estereotipo do brasileiro-interesseiro foi deitado por terra, estilhaçou-se completamente (embora haja de tudo um pouco, obviamente).
Já vivi em vários países nos últimos dez anos. E nunca em nenhum deles me senti tão acarinhado e bem recebido desde o primeiro minuto como aqui. Carinho. Sim, carinho é a palavra certa. Encontrei em Salvador essa "boa onda" que me permitiu relaxar e baixar aquelas defesas tensas com que vivemos permanentemente em Luanda. Descompri e pensei muito a sério no que quero para o meu futuro - aí surge, então, um beco sem saída e a dúvida: bato no muro e dou-lhe eternamente cabeçadas, ou volto para trás (para onde?) e refaço o caminho? Só o tempo o dirá. Mas na verdade, muita coisa terá que mudar no meu regresso a Luanda. Estou cansado de montanhas russas emocionais.
Volto, assim, ao início deste texto. O que fiz em dois meses? Muito, afinal. Percorri as ruas e intermináveis ladeiras desta cidade. Pituba, Amaralina, Rio Vermelho e o acarajé da Dinha, praia da Paciência com a antiga casa da Gal Costa lá em cima do morro. Ondina, Barra, a minha Barra. O farol, magnífico, a marcar a entrada da Bahia de Todos os Santos e o início do Recôncavo baiano. A praia do Porto, passerelle em forma de areia, palco de mil um filmes, inusitados para quem vem de África.
Horas e horas de autocarros com os seus baleiros, autênticas máquinas de marketing que vendem rebuçados, chicletes e tudo e mais alguma coisa. Todos com "pessoal" na boca a cada dez segundos. Ônibus para todo o lado. 2,30 reais, o máximo 3. E o trânsito que, como na Nguimbi, pára com uma ou duas gotas de chuva (e aqui choveu uma semana inteira quase sem parar!).
Dois meses de Pelourinho. Mítico. O início de tudo no Feijão da Alaíde. Dois meses de muito cravinho, cachaça, catuaba, príncipe perfeito, Skol, Skin, cerveja gelada, não fresca. Dias e dias de acarajé, abará, queijo coalho, vatapá, caruru, moqueca de tudo e mais alguma coisa, casquinha de siri, bobó de camarão, mandiçoba, churrasco, caldo de sururu, farofa, escondidinho, carne de sol, arrumadinho, do magnífico açaí e de pimenta que não arde como a nossa.
Mas não estive parado. Numa atitude puramente burguesa, e queimando parte das poupanças que tinha reservado para começar com a minha "vida adulta", repensei-me. Eu exposto em jeito de espelho. A pior crueldade que alguém pode fazer-se a si mesmo, talvez, mas absolutamente necessária. Cheguei a algumas conclusões. A mais importante: também eu tenho que ser uma prioridade, o que não tem acontecido nos últimos anos. Ainda que isso possa correponder a rupturas radicais.
Enquanto isso, vivo os meus últimos momentos de Salvador. Dia após dia fui-me integrando nesta cidade que se arrisca a ser (mais um) dos meus refúgios. A ela devo esta calma e tranquilidade que já não sentia há tanto tempo. Este lugar tem uma energia enorme a que sucumbi sem pestanejar.
Aqui há sorrisos apenas sorrisos, sem segundas intenções. E dei-me conta que Luanda me tornou hipócrita, ao achar que não há sorriso sem interesse, simpatia sem pedido subjacente. O estereotipo do brasileiro-interesseiro foi deitado por terra, estilhaçou-se completamente (embora haja de tudo um pouco, obviamente).
Já vivi em vários países nos últimos dez anos. E nunca em nenhum deles me senti tão acarinhado e bem recebido desde o primeiro minuto como aqui. Carinho. Sim, carinho é a palavra certa. Encontrei em Salvador essa "boa onda" que me permitiu relaxar e baixar aquelas defesas tensas com que vivemos permanentemente em Luanda. Descompri e pensei muito a sério no que quero para o meu futuro - aí surge, então, um beco sem saída e a dúvida: bato no muro e dou-lhe eternamente cabeçadas, ou volto para trás (para onde?) e refaço o caminho? Só o tempo o dirá. Mas na verdade, muita coisa terá que mudar no meu regresso a Luanda. Estou cansado de montanhas russas emocionais.
Volto, assim, ao início deste texto. O que fiz em dois meses? Muito, afinal. Percorri as ruas e intermináveis ladeiras desta cidade. Pituba, Amaralina, Rio Vermelho e o acarajé da Dinha, praia da Paciência com a antiga casa da Gal Costa lá em cima do morro. Ondina, Barra, a minha Barra. O farol, magnífico, a marcar a entrada da Bahia de Todos os Santos e o início do Recôncavo baiano. A praia do Porto, passerelle em forma de areia, palco de mil um filmes, inusitados para quem vem de África.
Horas e horas de autocarros com os seus baleiros, autênticas máquinas de marketing que vendem rebuçados, chicletes e tudo e mais alguma coisa. Todos com "pessoal" na boca a cada dez segundos. Ônibus para todo o lado. 2,30 reais, o máximo 3. E o trânsito que, como na Nguimbi, pára com uma ou duas gotas de chuva (e aqui choveu uma semana inteira quase sem parar!).
Dois meses de Pelourinho. Mítico. O início de tudo no Feijão da Alaíde. Dois meses de muito cravinho, cachaça, catuaba, príncipe perfeito, Skol, Skin, cerveja gelada, não fresca. Dias e dias de acarajé, abará, queijo coalho, vatapá, caruru, moqueca de tudo e mais alguma coisa, casquinha de siri, bobó de camarão, mandiçoba, churrasco, caldo de sururu, farofa, escondidinho, carne de sol, arrumadinho, do magnífico açaí e de pimenta que não arde como a nossa.
As palavras proibidas do nosso vocabulário: rapariga, puto, pica, zona. E as deles: (mo)queca, bobó, bico. A descoordenação dos diferentes "portugueses" e aquela sensação estranhíssima de perceber cada palavra em estado bruto, mas de não atingir o seu significado, muitas vezes. A mesma língua na forma, uma outra coisa por vezes imperceptível no conteúdo. Uma gigante paranóia regada a "vei", "massa", "de foder", "rei", "um bocado", que aqui é muito, e pelo restante "baianês".
Dois meses de Cazuza a fazer mais sentido, de Mercedes Sosa, Victor Jara, Violeta Parra no sentimento pan-americano. O Carnaval que não vivi, mas que está omipresente nos sons imortais Dodó e Osmar com o hino "Chame Gente", que me emociona "pa caralho". Do magnífico Armandinho, Spok Trevo, Moraes Moreira, shows e mais shows. De roda de samba em Itapuã e no Santo António ao estilo que eu gosto - chinelo no pé e pé no chão, sem pretensiosismos, gente à volta de uma mesa a tocar e cantar com toda a alma que a cerveja imprime a quem tem já o samba nas veias. O axé, o pagode o forró. O candomblé que não toquei. E o Sancofa com os seus sembas, kizombas, kuduros e tarraxas do DJ Fábio. Angola pintada a amarelo na parede e a banda brasileira que tem nome de Semba, mas não o sabe tocar.
A Bahía, sobretudo, das minhas pessoas. Soteropolitanos (naturais daqui) que conheci em Luanda e que me abraçaram todo este tempo, me levaram ao colo e que cuidaram de mim. Filipe, Chetto, Manu, Ciro, Danilo. As minhas paixonetas, as minhas noites, os meus novos kambas. A Lina, mana búlgara-angolana; o Orlando, mestrando angolano na UFBA; a fantástica Lud. O grupo de angolanos, estudantes bolseiros da Odebrecht com quem matava saudades de casa com funje, danças e aquelas conversas e risadas exageradas e ruidosas a que baiano não está habituado e que sabem tão bem.
Amanhã vou para Vitória da Conquista e Canavieiras, no interior do estado. Segunda ou terça viajo para o Rio de Janeiro onde deverei ficar duas semanas. Sigo depois para São Paulo, mais duas semanas, e depois Argentina e México. Até final de Julho vou estar em rotação.
Para trás fica Salvador, que olho já com os "olhos de adeus" que tenho posto tantas vezes nos últimos anos. Bahía, a minha Bahía que me diz em jeito de bossa-nova "chega de saudade". Mas não vale a pena, saudade é a minha segunda pele. E a cada canto deste mundo que percorro e vivo, ela se adensa e vai ganhando novos pretextos para se impôr em estado permanente. Fica a banda sonora do momento. Tom Jobim e Dorival Caymmi: "Ah que saudade eu tenho da Bahía..."
Comentários
Revi agora a fotografia que guardo na mente de Salvador e babei-me com a tua descrição das delicias da cozinha baiana.
Mas o que mais emocionou-me foram as tuas saudades. Essa palavra que os portugueses inventaram para nos atormentar eternamente.
Imagino o que seja para ti esse partir e querer ficar.
Espero que no teu itenerário de viagens faça parte um pit stop na terra da funaná.
Gostamos sempre de te ver e ouvir. Pois, se por um lado o aventureiro tem como dor a saudade, por outro tem historias como cor.
Quantas cores não deve ter hoje a tua aguarela.
Aquele abraço mano e que as tuas viagens sejam GRANDES
Acho que aproveito para viajar também através das tuas estórias.
Bjs.