"A bo é di nos"


Uma das grandes diferenças entre Cabo Verde, onde vivi durante um ano e qualquer coisa, e Angola, é a forma como cada um integra o "outro", muitas vezes um de nós que não reconhecemos como tal. A tal história da identidade.

Quanto cheguei à Praia, em Janeiro de 2005, olhavam-me de lado. Estranhei, porque afinal de contas essa tal morabeza crioula que se apregoava aos sete ventos era uma grande treta. Mas estava enganado. Na ilha de Santiago, as pessoas não são imediatas. Olham e estudam primeiro quem chega. Se decidem que o "forasteiro" é de confiança, acolhem-no como um filho. Para a vida. Foi isso que me aconteceu. Assim que a estranheza inicial passou, imediatamente comecei a entrar na cultura das ilhas, a fazer amigos, a estabelecer a minha vida - simples, rotineira, muito "directa", como é o dia-a-dia na cidade da Praia.

Foi assim que, de repente, passei a fazer parte daquele chão. "A bo é ka nada angolano, a bo é di nos", diziam-me a todo o passo. Qualquer coisa como "tu não és nada angolano, tu és nosso". Situações destas, que marcam, foram-se sucedendo. Quando regressei, em 2008, no aeroporto estava uma amiga, ao abraçar-me, disse-me: "Pedrito, bem-vindo a bu tera". Não precisa de tradução. Nem de explicação da dimensão que estas palavras encerram.

Igual atitude em relação aos cabo-verdianos que vivem na diáspora. Um exemplo elucidativo: uma vez, estava com um amigo, natural de Luanda, filho de cabo-verdianos, no Cantinho da Fá, no Miramar. Era uma daquelas noites de sábado, em que a música crioula ao vivo vai até às tantas. Depois de umas cervejas e de uns grogues, esse meu kamba foi ter com os músicos e disse-lhes que era descendente de cabo-verdianos, mas que nunca tinha ido às ilhas, uma vez que vivera sempre no Brasil. O que se seguiu foi incrível: os kotas abraçaram-no, acolheram-no, disseram-lhe, com lágrimas nos olhos, "és nosso". E ele ficou em família.

Cá: olhamos de lado quem chega, mas, salvo algumas excepções, não damos o passo de aproximação, pomo-lo continuamente em causa. Sobretudo nos meios urbanos, já que no interior, nos kimbos, nos meios simples, a receptividade ao outro costuma ser incrível (digo-o por experiência própria). Em termos de identidade, a coisa já é mais geral, parece-me. Andamos com um "termómetro" de angolanidade na mão, com que nos medimos uns aos outros, a todo o tempo, a temperatura, que, não raras vezes, está gelada, claro está. E a maioria das vezes menosprezamos (admitamos) os angolanos que vivem lá fora. Porque não "sofrem como nós", porque não podem falar a milhares de quilómetros, porque, porque, porque. Em relação aos filhos de angolanos que nasceram no estrangeiro, então nem se fala. São qualquer coisa, menos muangolês. Aves raras, talvez.

É esta a diferença: em Cabo Verde, a identidade é essencialmente inclusiva, abarca os que dão alguma coisa positiva àquela terra, nem que seja um pouco de carinho (com excepções, claro, nenhum lugar é perfeito). Mas em Angola, a identidade segrega à partida tudo o que foge aos cânones, esse tal "purismo" de que falei num post anterior. Ouvem-se todos os dias coisas como "eu é que sou o verdadeiro angolano", ou "vocês não és nada angolano", "você é budjurra", ou ainda o famoso e polémico "santomense", que não poupou sequer o Zédu em tempos de campanha política. Só falta criar um conjunto de barras tipo Pantone, mas em vez de cor, meter conceitos para ver a percentagem de angolanidade de cada um. Ridículo.

No fundo, isto talvez se explique com aquela ideia de que as segregações são, sobretudo, formas de excluir grupos de pessoas do acesso aos recursos. Cabo Verde é estéril, por isso, em teoria, pouco há a proteger da cobiça alheia. E que há (emprego, por exemplo), também provoca reacções vergonhosas. Um exemplo é o tratamento indigno que é dado, muias vezes, aos imigrantes da costa ocidental africana, os prejorativamente chamados mandjacos, altamente ostracizados na sociedade cabo-verdiana. Que também tem o seu quê de xenófoba, embora não goste de admiti-lo. Em Angola: nem vale a pena falar na infinidade de riquezas. Muitas, que dão para todos, mas que poucos querem concentrar nas suas mãos. E aí começa uma roda-viva de barbaridades, exclusivismos e disparos sobre tudo que se mexe, e que só cabem na cabeça dos que se borram de medo de perder o lugar (mais ou menos efémero) que têm no poleiro.

E andamos nós aqui numa discussão da treta. Que também as há noutros lados do mundo, não nos enganemos. Cada um com as suas manias. E as de Cabo Verde também são interessantes. Como aquela conversa, própria de quem é resultado quase perfeito de rotas cruzadas de povos, sobre se são africanos ou europeus. Há quem diga que são "atlânticos". Normalmente abstenho-me de dar a minha opinião, porque essa não é a minha praia (embora, muito sinceramente, vista de fora a discussão seja ridícula). Apenas relembro aos meus kambas cabo-verdianos que África não é uniforme, nem plana. E que, para serem africanos, não têm que andar com uma lança na mão a caçar elefantes...

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