Kotas, música, colonos e eu
Cresci com estas músicas, que me ajudaram a criar o imaginário do que seria Angola. Ouvíamo-las repetidamente em duas cassetes gastas que os meus pais levaram daqui, quando a História os apanhou desprevenidos, bem como ao resto da família, e os atirou para uma terra que os repudiava, a eles, portugueses de segunda. À distância do saudosismo de um tempo que, não há dúvidas, lhes foi injustamente favorável, enquanto privilegiados e dominadores, estas músicas ecoavam lá longe, em Portugal, onde nasci e aprendi que também era angolano. Solidificaram em mim um sentimento forte de pertença a esta grande terra do sul e foram a banda sonora de histórias e sabores que viria a reconhecer quando aterrei em Luanda pela primeira vez. Sem nostalgias nem intenções de recuperar o que quer que fosse de um passado que condenava, mas sim com vontade de compreender qual o meu lugar no meio deste “nós” ao qual sentia pertencer desde sempre.
As vozes dos kotas (são tantas que não as vou enumerar) são o meu reflexo identitário. Uma questão muito pessoal, ampliada numa discussão pública nos jornais, que, de tão enviesada, nem sequer equaciona que um tipo como eu se possa sentir autenticamente identificado e comprometido com este país, muito mais do que com qualquer outro lugar. Chamem-lhe abstracções, até aceito. Na verdade, nem sequer eu consigo explicá-las com argumentos racionais. Mas também não vale a pena tentar convencer os cépticos que isto não é "conversa da treta", saco fundo onde gostam de meter o que, para eles, não se enquadra num jogo sujo de corredores e interesses escondidos. Porque nesta sociedade, de uma forma brutal e infantil, é o material e a hipocrisia que nos guiam. E como julgamos os outros a partir de nós mesmos, os que dizem estar fora dessa lógica obscurantista de ganhar o máximo por todos os meios possíveis e imaginários (inclusive apelando ao amor pela pátria, um xaxo muito em voga até entre os que se auto-proclamam "verdadeiros angolanos"), ou são boelos, ou estão a mentir com todos os dentes. Acredito que tenham razão em alguns casos. Mas as generalizações são sempre um perigoso síndrome de desonestidade e preguiça intelectual.
Enquanto me é barrada a entrada no clube exclusivista dos “puros”, lá vou comendo umas funjadas e riscando umas passadas nos bodas – o único momento em que me olham, desconfiados, porque “tuga não dança assim”. Moro num beco da Ilha, atiro uns “xé” pelo meio, e dou por mim a mandar umas bocas sobre dignidade e liberdade e a exigir uma Angola diferente. Tretas de europeus e de quem não percebe nada disto, claro está. Porque não dei sangue, não tenho o direito de reclamar. Mas, filha da mãe de feitio, reclamo mesmo assim. Sou branco, nascido em Portugal num 4 de Fevereiro (ironia do destino), filho de angolanos-lusos brancos naturais de Benguela, neto de colonos brancos, portugueses das profundezas, todos “bazados” em 1975, um mês antes da Independência, e é aqui que vivo, por uma opção pessoal – é esta a história da minha angolanidade. À qual não posso fugir e que não posso fazer de conta que não existe. É ela quem me faz permanecer, que me incute o dever de me revoltar e indignar com situações com que não concordo, e que avalio de acordo com o esquema mental que as minhas experiências individuais e colectivas (não interessam quais, não interessam onde) foram arquitectando; angolanidade que me faz alegrar, celebrar, dançar, viver rápido e arrepiar da cabeça aos pés quando canto a plenos pulmões, com o Paulo Flores, “um poema que diz que p’ra ser mais feliz tem que ser em Angola”. E chamem-lhe lamechices, hipocrisia, não me interessa. Esse é o vosso espelho, não o meu.
Comentários