Kotas, música, colonos e eu

Sou um coleccionador dedicado dos sons angolanos dos anos 60 e 70. E mantenho que nunca mais nesta terra se fez tão boa música como naqueles tempos. Estas canções são hinos, murmúrios, farras, sonhos, esperanças, são o fervilhar, a subversão, a inversão, a revolução. São os desgostos e sucessos de amor, a crença e falhanço de convicções. Vozes de vivos e de meio-vivos, também de mortos. São o trio da saudade, Artur Nunes, David Zé, Urbanito, obituário do 27 de Maio de 77. São a utopia, o sonho, a luta, a perseguição, a independência, a purga, o espanto, a guerra. A invasão, a ideologia e os slogans revolucionários, tão estranhos e “ingénuos”, 30 anos e muito cinismo depois. São o nada, a queda e a vertigem. São os sembas, as dikanzas, os riscos no chão. O som da agulha dos gira-discos, as baladas e lamentos, autênticos blues com sabor a terra angolana, arrancados a kimbundo.

Cresci com estas músicas, que me ajudaram a criar o imaginário do que seria Angola. Ouvíamo-las repetidamente em duas cassetes gastas que os meus pais levaram daqui, quando a História os apanhou desprevenidos, bem como ao resto da família, e os atirou para uma terra que os repudiava, a eles, portugueses de segunda. À distância do saudosismo de um tempo que, não há dúvidas, lhes foi injustamente favorável, enquanto privilegiados e dominadores, estas músicas ecoavam lá longe, em Portugal, onde nasci e aprendi que também era angolano. Solidificaram em mim um sentimento forte de pertença a esta grande terra do sul e foram a banda sonora de histórias e sabores que viria a reconhecer quando aterrei em Luanda pela primeira vez. Sem nostalgias nem intenções de recuperar o que quer que fosse de um passado que condenava, mas sim com vontade de compreender qual o meu lugar no meio deste “nós” ao qual sentia pertencer desde sempre.

As vozes dos kotas (são tantas que não as vou enumerar) são o meu reflexo identitário. Uma questão muito pessoal, ampliada numa discussão pública nos jornais, que, de tão enviesada, nem sequer equaciona que um tipo como eu se possa sentir autenticamente identificado e comprometido com este país, muito mais do que com qualquer outro lugar. Chamem-lhe abstracções, até aceito. Na verdade, nem sequer eu consigo explicá-las com argumentos racionais. Mas também não vale a pena tentar convencer os cépticos que isto não é "conversa da treta", saco fundo onde gostam de meter o que, para eles, não se enquadra num jogo sujo de corredores e interesses escondidos. Porque nesta sociedade, de uma forma brutal e infantil, é o material e a hipocrisia que nos guiam. E como julgamos os outros a partir de nós mesmos, os que dizem estar fora dessa lógica obscurantista de ganhar o máximo por todos os meios possíveis e imaginários (inclusive apelando ao amor pela pátria, um xaxo muito em voga até entre os que se auto-proclamam "verdadeiros angolanos"), ou são boelos, ou estão a mentir com todos os dentes. Acredito que tenham razão em alguns casos. Mas as generalizações são sempre um perigoso síndrome de desonestidade e preguiça intelectual.

A minha assumpção enquanto angolano, cá, tem algo de comédia série B. Quando cheguei, em 2004, logo soube que era pula. Obrigatoriamente com os bolsos cheios de kumbu e não raras vezes “filho da puta” – idealização que acabei por perceber quando comecei a ver ao largo alguns espécimes que vinham (e vêm) cá parar, que apetece transformar em sacos do boxe. Mas de um momento para o outro, talvez pelo sol africano, virei “laton”, já menos “filho da puta”, e com menos dinheiro na conta, para meu azar.

Mais tarde, a lei da nacionalidade confirmou-me luso-angolano, um "duplo"; uns tempos depois, soube que também era “oportunista”, “angolano falso” e, mais recentemente, “angolano de ocasião”. Mas nunca “angolano puro”, expressão inventada por quem anda à procura de si mesmo sem o saber, e que reduz isto de se ser angolano, ou outra coisa qualquer, a formas estanques, de preferência àquelas em que eles assentam que nem luvas. Para que não haja dúvidas do que são, e das posições de poder e exigências pessoais que, a partir disso, podem reivindicar do país e da sociedade. Porque no fundo, estas categorizações não passam de joguinhos freudianos de poder, tentativas ridículas de se priorizarem no acesso aos recursos e de manter e sobrepôr o status quo perante a "ameaça" que, muitas vezes, só existe nas suas cabeças. E, claro, nesta pureza absurda que apregoam, já há alguns parâmetros identificados: um “puro” tem que poder cantar com as Gingas “sinto-me orgulhoso de ser africano/meus antepassados todos nasceram aqui” e, igualmente importante, ter aguentado como um valente todas as privações da guerra. Porque assentar arraiais só depois da Paz, quando já tudo é “fácil” é, mais uma vez, sinal de um oportunismo avassalador, de quem recorre ao passaporte preto para dar uma de filho da terra e sugá-la até onde não puder mais.

Enquanto me é barrada a entrada no clube exclusivista dos “puros”, lá vou comendo umas funjadas e riscando umas passadas nos bodas – o único momento em que me olham, desconfiados, porque “tuga não dança assim”. Moro num beco da Ilha, atiro uns “xé” pelo meio, e dou por mim a mandar umas bocas sobre dignidade e liberdade e a exigir uma Angola diferente. Tretas de europeus e de quem não percebe nada disto, claro está. Porque não dei sangue, não tenho o direito de reclamar. Mas, filha da mãe de feitio, reclamo mesmo assim. Sou branco, nascido em Portugal num 4 de Fevereiro (ironia do destino), filho de angolanos-lusos brancos naturais de Benguela, neto de colonos brancos, portugueses das profundezas, todos “bazados” em 1975, um mês antes da Independência, e é aqui que vivo, por uma opção pessoal – é esta a história da minha angolanidade. À qual não posso fugir e que não posso fazer de conta que não existe. É ela quem me faz permanecer, que me incute o dever de me revoltar e indignar com situações com que não concordo, e que avalio de acordo com o esquema mental que as minhas experiências individuais e colectivas (não interessam quais, não interessam onde) foram arquitectando; angolanidade que me faz alegrar, celebrar, dançar, viver rápido e arrepiar da cabeça aos pés quando canto a plenos pulmões, com o Paulo Flores, “um poema que diz que p’ra ser mais feliz tem que ser em Angola”. E chamem-lhe lamechices, hipocrisia, não me interessa. Esse é o vosso espelho, não o meu.

Ouço os kotas (desculpem lá o desvio deste texto, mas saiu assim mesmo) e reconheço os momentos que me formaram. Ouvir as músicas de alguns deles dá-me força quando olho à minha volta e acho que isto não tem remédio - são exemplos de que a "luta" acaba apenas quando a vida se extingue ou quando no-la arrancam. Marcaram-me pela sua tragédia, pela força da sua atitude e determinação, e fazem-me sentir saudades de um tempo em que, independentemente da ideologia que se pregava, a luta para que Angola fosse, sem demoras, igual, próspera, livre e integradora era genuína (lá estão as tais ideias de europeu, mas agora pedi-as emprestadas...) Eram grandes, alguns destes kotas. Por isso os tentaram calar. A "ferro quente" mas sem muito sucesso...

Comentários

Ju Borges disse…
Essa coisa toda sofrida de nascer num lugar, pertencer ao outro, voltar, partir, parecer ser o que não é, ser o que não parece... tudo isso é bué complicado, né? Um conflito enrome. E acho que só quem viveu isso entende. é igual guerra. Mas, no fim das contas, se vc sabe lidar com isso, acaba sendo um homem melhor. :)

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