O Senhor dos Terramotos
Em Outubro, o Peru veste-se de roxo. Espera a saída do Senhor dos Milagres do Mosteiro das Nazarenas, em Lima. A origem do culto remonta ao século XVII, quando um escravo angola pintou a imagem que deu origem a um dos maiores e mais fervorosos cultos católicos de todo o mundo.
Abrem-se as portas do Mosteiro das Irmãs Nazarenas. Um arrepio profundo percorre a avenida Tacna, no centro histórico de Lima. O fumo de centenas de incensários turva a vista, o ambiente arde em fé de carvão em brasa. Uma fanfarra - trombones, trompetas, tambores, clarinetes, pratos - modula o ambiente, toca a fé. A capital do Peru suspende a respiração, olhos postos na entrada do enorme templo das Nazarenas de onde sai, em passo lento e balanceado, carregado aos ombros de homens vestidos de roxo, o andor com a pintura de um Cristo negro.
Mulheres desatam em pranto, milhares batem palmas, elevam as mãos aos céus, atiram flores ao andor. "Señor de los Milagros, aquí venimos en procesión, tus fieles devotos a implorar tu bendición". Vozes ásperas de velhas senhoras em cântico sincopado e antigo, cabeças cobertas por véus brancos rendilhados. Voam tiras de papel, brancas e roxas, pelo céu da antiga Cidade dos Reis. É Outubro em Lima. O Senhor dos Milagres está nas ruas.
A procissão do Senhor dos Milagros (Señor de los Milagros, em espanhol), é uma das maiores da religião católica (há mesmo quem afirme que é a maior). Milhões de pessoas em mais de 250 cidades de todo o mundo celebram o chamado Cristo Negro num acto impressionante de fé que arrepia a pele de quem, de repente, se vê imerso na maré colectiva de devoção profunda. "Podes nem ser crente, mas estando aí, sem te dares conta, até rezas um Pai Nosso, por via das dúvidas", brinca Jaime Arenas, membro da Irmandade do Senhor dos Milagres das Nazarenas, em entrevista à Austral a partir de Lima.
A história do também chamado "Cristo Roxo", a cor que representa esta devoção, é tão insuspeita como antiga. Em 1650, Lima ainda não se chama Lima. É a Cidade dos Reis, capital do Vice-Reino do Peru, colónia espanhola. Habitam-na 27 mil almas. Metade é de origem africana.
Em Pachacamilla, um bairro afastado do centro da pequena cidade, vivem escravos angola. Organizam-se numa confraria, "com o objectivo de dar um enterro digno aos seus membros, que nessa altura já professam a fé católica", conta o jesuíta e historiador Ruben Vargas Ugarte, no documentário da televisão peruana, "Senhor dos Milagres". Vistos com desconfiança pelas autoridades de Lima, que os acusa de planear assaltos e difundir práticas profanas, os escravos insistem em reunir-se em celebração sincrética do seu novo Deus e das tradições africanas.
Em 1651, um ano depois da fundação da confraria, um dos seus membros, o escravo angola que a tradição baptizou de "Benito", pinta a imagem de um Cristo Crucificado numa parede de adobe. Cruz solitária, Jesus de olhos fechados, cabeça caída, com uma cidade em pano de fundo. A imagem que preside os encontros da Confraria de Pachacamilla permanece anónima e "angolana" durante os quatro anos seguintes.
O muro que não cai
Sábado, 13 de Novembro de 1655. 14 horas e 20 minutos. Um violento sismo sacode e destrói Lima. No meio dos escombros de Pachacamilla, a surpresa: o frágil muro de adobe com a imagem do Cristo negro permanece de pé. À volta, todas as construções estão em ruínas. O pó ainda não assentou e pelas ruas da desfeita Cidade dos Reis, o jesuíta Francisco del Castillo apela à expiação dos pecados e à conversão a Cristo, seguido por 10 mil crentes ainda zonzos pela vertigem do abalo.
A notícia do "milagre" ecoa pela cidade em ferida aberta e institui um novo culto. Às sextas-feiras à noite, "os escravos angola passam a venerar de forma muito especial a imagem", conta à Austral o Mordomo da Irmandade do Senhor dos Milagres em Roma, Julio Molina. "Levam flores, velas, incenso, cantam e bailam danças africanas", em cerimónias que congregam "mais de 200 fiéis", entre negros e outros habitantes da cidade já rendidos ao "poder milagroso da imagem".
Ao som dos tambores, o alvoroço dos crentes de Pachacamilla de novo alerta as autoridades de Lima, que mandam destruir a pintura na segunda semana de Setembro de 1671. O que se seguiu, deixa todos de boca aberta. Relata Julio Molina: " As duas primeiras pessoas que tentaram apagar a imagem, começaram a tremer de forma inexplicável e tiveram que ser amparadas pelos seus colegas. A missão foi então dada a um soldado, de carácter mais forte, que, mal estendeu o braço para dar a primeira pincelada, viu a figura de Cristo transfigurar-se e ficou paralisado." Atónito, Pedro Fernández, o então Vice-Rei do Peru e Conde de Lemos, revoga a ordem de destruição. Depois de visitar o lugar, manda construir uma ermita no local. A 14 de Setembro do mesmo ano, realiza-se a primeira missa junto à imagem que começa a ser conhecida em Lima como "Santo Cristo dos Milagres ou das Maravilhas".
A prova final viria 16 anos mais tarde. Em 20 de Outubro de 1687, um forte terramoto, seguido de um maremoto, destrói novamente uma parte de Lima. Contra todas as probabilidades, uma vez mais o muro do Cristo de Pachacamilla permanece de pé. Sebastián de Antuñano, o então mordomo da Irmandade do Senhor dos Milagres, manda pintar uma réplica a óleo da imagem sagrada e sai em procissão pelas ruas destruídas de Lima. Numa anda de madeira, carrega a pintura que percorreu os tempos, e que ainda hoje é o centro das procissões de Outubro, na capital peruana. Convencidas, as autoridades coloniais rendem-se ao Cristo negro. Em 1715, Lima elege-o como seu padroeiro e protector. A tragédia voltaria a repetir-se duas décadas depois quando, a 28 de Outubro de 1746, a sacrificada Lima cai por terra no pior sismo da sua história. Cinco mil pessoas morrem em menos de três minutos. No meio de uma destruição inenarrável, o muro de Pachacamilla continua intacto. Entre fé, milagres e desamparo, a devoção ao Senhor dos Milagres vira conforto. No ano seguinte ao terramoto, conta o investigador Pablo Luis Fandiño no artigo "O Senhor dos Milagres", "de forma excepcional, a procissão do Senhor dos Milagres durou cinco dias, e acrescentou-se ao andor a figura da Nossa Senhora da Nuvem, que ainda hoje se mantém".
No meio das ruínas de uma cidade sacrificada, a tradição religiosa nascida no seio dos escravos angola do bairro de Pachacamilla cresce em forma, força e devoção durante os séculos seguintes. Hoje, a pintura do escravo Benito é o vórtice das crenças de milhões de fiéis que todos os anos saem às ruas de dezenas de países, naquela que muitos consideram a maior procissão católica de todo o mundo.
Uma história de identidade
Mais que uma lenda cristalizada em 1650 sobre um escravo da Confraria de Pachacamilla, a influência da "Nação Angola" no Peru e na tradição do Senhor dos Milagres é uma questão de identidade. Ver mais
Incas, Angolas e Jesus
Segunda Parte: Outubro Roxo
Terceira Parte: O Crepúsculo feito Pedaços
Reportagem originalmente publicada na revista Austral.
Fotos: LDSLMPIP-CEPAC-UCSS
Abrem-se as portas do Mosteiro das Irmãs Nazarenas. Um arrepio profundo percorre a avenida Tacna, no centro histórico de Lima. O fumo de centenas de incensários turva a vista, o ambiente arde em fé de carvão em brasa. Uma fanfarra - trombones, trompetas, tambores, clarinetes, pratos - modula o ambiente, toca a fé. A capital do Peru suspende a respiração, olhos postos na entrada do enorme templo das Nazarenas de onde sai, em passo lento e balanceado, carregado aos ombros de homens vestidos de roxo, o andor com a pintura de um Cristo negro.
Mulheres desatam em pranto, milhares batem palmas, elevam as mãos aos céus, atiram flores ao andor. "Señor de los Milagros, aquí venimos en procesión, tus fieles devotos a implorar tu bendición". Vozes ásperas de velhas senhoras em cântico sincopado e antigo, cabeças cobertas por véus brancos rendilhados. Voam tiras de papel, brancas e roxas, pelo céu da antiga Cidade dos Reis. É Outubro em Lima. O Senhor dos Milagres está nas ruas.
A procissão do Senhor dos Milagros (Señor de los Milagros, em espanhol), é uma das maiores da religião católica (há mesmo quem afirme que é a maior). Milhões de pessoas em mais de 250 cidades de todo o mundo celebram o chamado Cristo Negro num acto impressionante de fé que arrepia a pele de quem, de repente, se vê imerso na maré colectiva de devoção profunda. "Podes nem ser crente, mas estando aí, sem te dares conta, até rezas um Pai Nosso, por via das dúvidas", brinca Jaime Arenas, membro da Irmandade do Senhor dos Milagres das Nazarenas, em entrevista à Austral a partir de Lima.
A história do também chamado "Cristo Roxo", a cor que representa esta devoção, é tão insuspeita como antiga. Em 1650, Lima ainda não se chama Lima. É a Cidade dos Reis, capital do Vice-Reino do Peru, colónia espanhola. Habitam-na 27 mil almas. Metade é de origem africana.
Em Pachacamilla, um bairro afastado do centro da pequena cidade, vivem escravos angola. Organizam-se numa confraria, "com o objectivo de dar um enterro digno aos seus membros, que nessa altura já professam a fé católica", conta o jesuíta e historiador Ruben Vargas Ugarte, no documentário da televisão peruana, "Senhor dos Milagres". Vistos com desconfiança pelas autoridades de Lima, que os acusa de planear assaltos e difundir práticas profanas, os escravos insistem em reunir-se em celebração sincrética do seu novo Deus e das tradições africanas.
O muro que não cai
Sábado, 13 de Novembro de 1655. 14 horas e 20 minutos. Um violento sismo sacode e destrói Lima. No meio dos escombros de Pachacamilla, a surpresa: o frágil muro de adobe com a imagem do Cristo negro permanece de pé. À volta, todas as construções estão em ruínas. O pó ainda não assentou e pelas ruas da desfeita Cidade dos Reis, o jesuíta Francisco del Castillo apela à expiação dos pecados e à conversão a Cristo, seguido por 10 mil crentes ainda zonzos pela vertigem do abalo.
A notícia do "milagre" ecoa pela cidade em ferida aberta e institui um novo culto. Às sextas-feiras à noite, "os escravos angola passam a venerar de forma muito especial a imagem", conta à Austral o Mordomo da Irmandade do Senhor dos Milagres em Roma, Julio Molina. "Levam flores, velas, incenso, cantam e bailam danças africanas", em cerimónias que congregam "mais de 200 fiéis", entre negros e outros habitantes da cidade já rendidos ao "poder milagroso da imagem".
Ao som dos tambores, o alvoroço dos crentes de Pachacamilla de novo alerta as autoridades de Lima, que mandam destruir a pintura na segunda semana de Setembro de 1671. O que se seguiu, deixa todos de boca aberta. Relata Julio Molina: " As duas primeiras pessoas que tentaram apagar a imagem, começaram a tremer de forma inexplicável e tiveram que ser amparadas pelos seus colegas. A missão foi então dada a um soldado, de carácter mais forte, que, mal estendeu o braço para dar a primeira pincelada, viu a figura de Cristo transfigurar-se e ficou paralisado." Atónito, Pedro Fernández, o então Vice-Rei do Peru e Conde de Lemos, revoga a ordem de destruição. Depois de visitar o lugar, manda construir uma ermita no local. A 14 de Setembro do mesmo ano, realiza-se a primeira missa junto à imagem que começa a ser conhecida em Lima como "Santo Cristo dos Milagres ou das Maravilhas".
A prova final viria 16 anos mais tarde. Em 20 de Outubro de 1687, um forte terramoto, seguido de um maremoto, destrói novamente uma parte de Lima. Contra todas as probabilidades, uma vez mais o muro do Cristo de Pachacamilla permanece de pé. Sebastián de Antuñano, o então mordomo da Irmandade do Senhor dos Milagres, manda pintar uma réplica a óleo da imagem sagrada e sai em procissão pelas ruas destruídas de Lima. Numa anda de madeira, carrega a pintura que percorreu os tempos, e que ainda hoje é o centro das procissões de Outubro, na capital peruana. Convencidas, as autoridades coloniais rendem-se ao Cristo negro. Em 1715, Lima elege-o como seu padroeiro e protector. A tragédia voltaria a repetir-se duas décadas depois quando, a 28 de Outubro de 1746, a sacrificada Lima cai por terra no pior sismo da sua história. Cinco mil pessoas morrem em menos de três minutos. No meio de uma destruição inenarrável, o muro de Pachacamilla continua intacto. Entre fé, milagres e desamparo, a devoção ao Senhor dos Milagres vira conforto. No ano seguinte ao terramoto, conta o investigador Pablo Luis Fandiño no artigo "O Senhor dos Milagres", "de forma excepcional, a procissão do Senhor dos Milagres durou cinco dias, e acrescentou-se ao andor a figura da Nossa Senhora da Nuvem, que ainda hoje se mantém".
No meio das ruínas de uma cidade sacrificada, a tradição religiosa nascida no seio dos escravos angola do bairro de Pachacamilla cresce em forma, força e devoção durante os séculos seguintes. Hoje, a pintura do escravo Benito é o vórtice das crenças de milhões de fiéis que todos os anos saem às ruas de dezenas de países, naquela que muitos consideram a maior procissão católica de todo o mundo.
Uma história de identidade
Mais que uma lenda cristalizada em 1650 sobre um escravo da Confraria de Pachacamilla, a influência da "Nação Angola" no Peru e na tradição do Senhor dos Milagres é uma questão de identidade. Ver mais
Incas, Angolas e Jesus
As coincidências entre a história pré-hispânica da região de
Lima e a tradição do Senhor dos Milagres são muitas. Ver mais
Segunda Parte: Outubro Roxo
Terceira Parte: O Crepúsculo feito Pedaços
Reportagem originalmente publicada na revista Austral.
Fotos: LDSLMPIP-CEPAC-UCSS
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