Outubro Roxo


Padroeiro de todo Peru desde 2010 e Património Cultural da Nação, o Senhor dos Milagres percorre as ruas de Lima durante horas a fio, em percursos que começam às 7 da manhã e terminam às 2 ou 3 da madrugada do dia seguinte. Pelo caminho, passa por hospitais e é reverenciado pelo Presidente da República, pelo Congresso do Peru e pelos Militares.


O Mosteiro das Nazarenas, na Avenida Tacna, em Lima, é o ponto central desta celebração que acontece a cada dia 18, 19 e 28 de Outubro. As madres, Carmelitas de Pés Descalços, são as fiéis guardiãs da tradição e dos símbolos do Senhor dos Milagres - o muro original, a figura pintada a óleo e o andor. Na origem da congregação está uma figura central, Antonia de Maldonado. No início do século XVIII, no leito da sua morte, o mordomo Sebastián de Antuñano pediu à beata equatoriana que perpetuasse o culto ao Cristo Negro. Antonia acedeu. Converteu-se em religiosa, mudou o apelido para "Espíritu Santo" e passou então a vestir-se de roxo, a cor que representa a paixão de Cristo.

Nascia, assim, uma tradição tremenda - roxa, muito roxa!. Julio Molina, mordomo geral da Irmandade do Senhor dos Milagres em Roma, testemunha que "em Outubro, Lima se veste de roxo, literalmente. Às vezes, as mulheres usam o hábito roxo durante todo o mês, os homens põem uma gravata roxa ou algo que identifique a sua devoção". E até o Alianza Lima, "um dos clubes de futebol mais queridos do país, muda o equipamento em Outubro e joga com uma camisola roxa, em homenagem ao Senhor", acrescente Jaime Arenas, membro da Irmandade do Senhor dos Milagres das Nazarenas. Segundo um documento publicado na página da internet do clube, a explicação é simples: em 1920, quando o distrito de La Victoria, de onde vem a equipa, foi criado, o lugar "converteu-se num reduto das famílias negras da capital". "Como o seu bairro, a equipa de futebol era popular, divertida, alegre, boémia, negra, devota do Cristo Roxo".

Milagres do Senhor
A Festa do Senhor dos Milagres não se limita à procissão. À sua volta, há toda uma série de iniciativas que se repetem ano após ano. Uma delas é a famosa Festa Taurina do Senhor dos Milagres, alheia à Irmandade, e considerada uma das mais importantes da América Latina. E há, claro, o famoso torrão da Dona Pepa. O mordomo Julio Molina conta: "A história narra que, no período colonial, Dona Pepa era uma cozinheira que estava a perder a mobilidade das mãos e das pernas. Depois de tantas orações. o Senhor curou-a e ela, para agradecer-lhe, preparou-lhe este doce. A cada ano oferecia-o aos mais necessitados que frequentavam o mosteiro das Nazarenas". A tradição doce é hoje, inseparável da procissão.


Mas serão estes milagres reais ou ilusão colectiva? "São numerosos os actos de conversão, fruto do encontro das pessoas com o Senhor na procissão", defende à Austral Fernando Carrión, vice-mordomo da Irmandade de Santiago do Chile. "No meu caso", conta Jaime Arenas, "tenho uma história para contar": "a sobrinha da minha esposa nasceu em estado grave, precisamente em Outubro. Eu rezei ao 'velho', como chamamos carinhosamente ao Senhor, para que ela se curasse e comprei um hábito roxo pequeno que pus ao ombro, enquanto carregava o andor. Ela curou-se em seguida. Por isso deram o nome de Milagritos à criança".

A fé, assume o limenho Francisco Roca em entrevista por e-mail,  "é tremenda." "A crença nos milagres, a fé, e a dimensão espiritual vão muito além do que uma pessoa possa imaginar", comenta. "Durante a procissão, há gente que entra em transe e que segue o andor de joelhos pelas ruas de Lima", relata. Por seu lado, Jaime Arenas descreve: "Durante horas a fio, envolve-nos toda essa mistura de música crioula com pessoas vestidas com o hábito roxo, o colorido do ambiente de Lima, que se transfigura nestes dias e essa fé tremenda que vê esta tradição como algo muito seu. O ´velho´ é como o pai que vela pelos seus filhos, sabemos que ele nos vai cuidar e que nunca nos deixará".























Na opinião de Fernando Carrion, este sentimento é, também, identitário. A partir de Santiago de Chile, explica que  "a devoção popular ao Senhor dos Milagres relaciona-se com uma cultura de encontro onde, sem importar a origem, a condição social, nacionalidade, profissão ou ofício, todos partilham um espaço comum de fé no  Cristo Negro". Ou não fosse o Peru, acrescenta à Austral a jornalista peruana Magaly Zapata, " um país católico declarado na Constituição como tal". Afinal, como diz o historiador peruano Juan Ossio, no documentário "Senhor dos Milagres",  "Outubro é o mês em que se reforça a identidade peruana. Através de um símbolo religioso renasce a  nossa nacionalidade".

"Onde há um Peruano, aí está o Senhor dos Milagres"
O culto ao Senhor dos Milagres universalizou-se. Ver mais

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