O Crepúsculo feito pedaços


A voz ao Conde de Lemos:

"Dirigimo-nos à Igreja [do Senhor dos Milagres]. Um sacristão torto e hostil, que melhor estaria de lambe-botas no inferno recebe-nos:
- O que deseja, irmão?
Surpreende-me o parentesco e respondo:
- Queria falar com o Senhor...
- Impossível. Está a comer.
- A comer?
- Você não está a perguntar pelo senhor Padre?
- Não. Eu desejo falar com o Senhor dos Milagres."

A provocação do Conde de Lemos, pseudónimo do jornalista Abraham Veldelomar, numa famosa sátira social e política publicada em"La Jornada" a 20 de Outubro de 1915, diz muito desta relação de "tu para tu" entre os peruanos e o Senhor dos Milagres.

Ao não encontrar o Cristo Negro, o repórter põe pés a caminho.  Pelo caminho, descreve, com ironia q.b., a procissão: "A multidão vai-se detendo numa pracita como seres pegados a um tronco. Esta humanidade mestiça e crente começa a ferver como calda de açúcar e mel. O incenso, em forma de vapor, envolve na sua translucidez as varandas circundantes e atravessa a enorme grade de fios eléctricos. (...) Nas mãos das moças octogenárias, incensários de filigrana de prata realizam o espiritual prodígio de lançar fumo perfumado (...). A multidão cheia de hábitos roxos e lilases, azuis e negros, parece um crepúsculo feito pedaços."

O assombro com o cenário que encontra logo se esvai, ao encontrar, por fim, o Senhor. Sem perder tempo, pergunta-lhe: "Não te chateiam estes cânticos lamechas? Estas velhas que gritam. Tu, acostumado à música celestial e aos coros dos Serafins!" "Melhor mudamos de tema...", evade o Cristo Negro.


Estas "velhas que gritam", na descrição burlesca do Conde de Lemos são, nada mais, nada menos, que os grupos de cantoras das Irmandade do Senhor dos Milagres das Nazarenas. Encabeçam o cortejo, entoando cânticos antigos, a maioria de autores anónimos. Perfilam-se depois, essas "moças octogenárias", bem pertinho do andor. Queimam resinas aromáticas e especiarias. "No tempo do vice-reino", comenta a líder destes grupos, Ruth Hernández, no documentário "Festividade do Senhor dos Milagres", "esta função estava reservada às escravas negras cujas amas enviavam à procissão, vestidas com as melhores roupas e com jóias de ouro, prata e pedras preciosas".

No centro do "crepúsculo feito pedaços", o andor. Com mais de 4 metros de altura, pesa cerca de 1300 quilos, 550 dos quais em puro ouro e prata. Foi construído em 1926 e porta a imagem a óleo que Sebastián de Antuñano mandou pintar em 1687, depois do maremoto. Reproduz a imagem de Cristo crucificado, pintada pelo escravo angola, à qual foram agregados, ao longo dos tempos, outros elementos - a Santíssima Trindade, a Virgem Dolorosa, a Igreja das Nazarenas e uma figura andrógina, que uns dizem ser Maria Madalena, e outros, o Apóstolo São João.

O andor é carregado pelas chamadas "quadrilhas", grupos de homens vestidos de roxo. As primeiras quatro foram criadas em 1766. Hoje são 20. "A experiência de carregar 'o velho', como chamamos carinhosamente ao Senhor, é forte", assegura à Austral o carregador da quinta esquadrilha, Jaime Arenas. "As demonstrações de fé das pessoas são tremendas. Às vezes tocam-nos o ombro e benzem-se. Uma vez uma senhora levou um filho numa cadeira de rodas e pediu-me que passasse o hábito da criança pelo andor ", conta. "Carregá-lo aos ombros é a minha forma de o levar às pessoas", conta, por sua vez, Fernando Carrión, vice-mordomo da Irmandade de Santiago de Chile,  para quem a missão das quadrilhas é " um acto de amor".

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