A Condessa, o Aeronauta e Diego
Quando os Acosta, família de judeus portugueses, chegaram ao
México no início do século XIX, deram início à linhagem paterna do muralista
mexicano Diego Rivera. Uma memória que o artista, amor eterno de Frida Kahlo, reivindicaria
ao longo da sua vida.
Diz-se no México que as boas histórias de vida são passionais. São felizes e dolorosas, atam e desatam nós cegos na garganta, tipo trago áspero de tequila barata.
Damos o tom e entramos numa das tabernas taciturnas da
cidade de Guanajuato – as chamadas “cantinas”, onde se destilam contos pessoais
com o avançar dos copos. Paredes de pedra bruta a meia-luz, bafo húmido. Na
minha cabeça, Chavela Vargas canta... “tú me acostumbraste, a todas esas cosas...”. É noite e chove
miudinho lá fora.
Polémico, temperamental, enorme e desproporcional, o Diego de olhos de rã e mãos sapudas foi o marido e amante de Frida Kahlo (ler "O elefante e a pomba") e um dos mais icónicos artistas mexicanos em todo o mundo.
“ [Os meus antepassados eram] espanhóis, holandeses, portugueses, italianos, russos e – sinto-me orgulhoso em dizê-lo – judeus”, declarou numa conferência de imprensa em 1952, na Cidade do México. “Recordo sobretudo (…) a minha avó – era uma judia portuguesa com o nome de Inés Acosta”, reforçou, por outro lado, numa entrevista ao fotógrafo norte-americano Marcel Sternberger.
Inés e a coroa de prata
Também a filha de Diego Rivera, Guadalupe Rivera Marín, já não guarda “qualquer recordação” sobre a origem dos Acosta. “Eram famílias muito antigas, não me lembro de ouvir o meu pai contar alguma coisa sobre isso”, afirma ao NM numa breve conversa telefónica.
Quando deram o nó, em 1842, Inés tinha 17 anos e Anastasio 50. “Um moço de vinte anos não poderia ter sido melhor amante”, terá dito a jovem na única frase que lhe é conhecida, segundo o autor Patrick Marham em “Sonhando de Olhos Abertos”. O casal teve nove filhos, entre os quais o pai de Diego Rivera.
O marco é importante para a história do México. O tio-avô de Diego foi a primeira pessoa a voar nos céus do país. Corria o ano de 1842. “Ele trouxe o primeiro balão de ar quente (…), tinha aprendido essa arte na França e na Holanda”, relata a autora Loló de la Torriente em “Memória e Razão de Diego Rivera”.
Contradição? Talvez não. A historiadora Alicia Gojman apresenta à NM uma hipótese: “Na altura em que essa família chegou, o México acabava de se tornar independente e a memória da Inquisição estava ainda bastante fresca. Foram muitas as pessoas que chegaram e não se declararam judias.” No caso de Benito Acosta, a académica levanta a possibilidade de uma “reinvenção da identidade”, como artifício para escapar a possíveis ameaças antissemitas.
Fonte: Más México |
Diz-se no México que as boas histórias de vida são passionais. São felizes e dolorosas, atam e desatam nós cegos na garganta, tipo trago áspero de tequila barata.
Com um brinde selamos o momento. E contamos uma secreta história de vida.
Foi nos últimos anos do século XIX, nesta tela ao estilo do
México colonial – estereótipo ainda bem vivo – que se desenhou a infância e
adolescência de Diego Rivera. O muralista e pintor (simplesmente “Diego”, para
os mexicanos) nasceu em 1886 no último andar de um velho casarão de Guanajuato.
Número 80 da Rua de Positos, onde há 43 anos se instalou a Casa Museu Diego
Rivera.
Polémico, temperamental, enorme e desproporcional, o Diego de olhos de rã e mãos sapudas foi o marido e amante de Frida Kahlo (ler "O elefante e a pomba") e um dos mais icónicos artistas mexicanos em todo o mundo.
Mil vezes se retratou a vida do muralista, mas há um lado
praticamente desconhecido, inclusivamente no México. Não há documentos
oficiais, a história tem partes turvas e até algumas contradições. Mas tanto o
artista como as velhas gerações da família recordam: Diego Rivera descende de
judeus portugueses, os Acosta, que chegaram ao México no início do século XIX.
“ [Os meus antepassados eram] espanhóis, holandeses, portugueses, italianos, russos e – sinto-me orgulhoso em dizê-lo – judeus”, declarou numa conferência de imprensa em 1952, na Cidade do México. “Recordo sobretudo (…) a minha avó – era uma judia portuguesa com o nome de Inés Acosta”, reforçou, por outro lado, numa entrevista ao fotógrafo norte-americano Marcel Sternberger.
Inés Acosta, a avó que “observava o Shabbat”, seria uma
recordação constante na vida do neto-artista, marcando presença sempre que Diego reivindicava uma ancestral herança judia.
Inés e a coroa de prata
No alto de uma estreita escadaria de pedra que trepa o Beco
das Almas, há uma praça arejada, como um respiro. No lado esquerdo,
enquadrada por duas árvores, encontramos a velha moradia onde se instalou a
família portuguesa dos Acosta quando chegou a Guanajuato, “em 1822 ou 1823”,
segundo a Enciclopédia Judio-Castelhana, citada num artigo da secretária
pessoal de Diego Rivera, Raquel Tibol. O edifício cor-de-rosa-mortiço parece agora
desabitado. Não encontramos a campainha. Batemos à porta uma, duas vezes.
Ninguém responde. Não insistimos.
Tal como o casarão, a história dos Acosta é espectral e silenciosa.
Quando a família chegou ao México, “a imigração lusa no país, tradicionalmente
constituída por judeus convertidos, era já muito rara”, conta à Notícias
Magazine a historiadora Alicia Gojman. “Os grandes autos-da-fé que ocorreram
aqui no século XVII marcaram o fim da chegada em massa de portugueses”, contextualiza
a investigadora da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM).
Casa dos Acosta, em Guanajuato. |
Também a filha de Diego Rivera, Guadalupe Rivera Marín, já não guarda “qualquer recordação” sobre a origem dos Acosta. “Eram famílias muito antigas, não me lembro de ouvir o meu pai contar alguma coisa sobre isso”, afirma ao NM numa breve conversa telefónica.
É nas biografias de Diego que pelo menos a avó Inés ganha
alguma forma. Sabemos, assim, que terá nascido no casarão dos Acosta por volta
de 1825 (e não em Portugal, como dizia Diego). Poucos anos depois ficou órfã de pai e viveu na
pequena praça até ao casamento com Anastasio de la Rivera, também ele de origem
judia e natural de Petrogrado (atual São Petersburgo, na Rússia).
Quando deram o nó, em 1842, Inés tinha 17 anos e Anastasio 50. “Um moço de vinte anos não poderia ter sido melhor amante”, terá dito a jovem na única frase que lhe é conhecida, segundo o autor Patrick Marham em “Sonhando de Olhos Abertos”. O casal teve nove filhos, entre os quais o pai de Diego Rivera.
Na obra “Dois Diegos, Dois Riveras”, uma das tias-avó do
muralista resgata ainda uma das poucas memórias em primeira-mão que restam de
Inés. Conta Aurora Alcocer que um certo dia, o “abuelito” Anastasio descobriu um
veio de prata na mina de Asunción, da qual era coproprietário. “Era um filão tão
grande que onze homens com os braços estendidos não o conseguiam abraçar”.
Eufórico, o velho Anastasio coroou então a sua esposa Inés: “Tu serás a
condessa ou marquesa de Asunción de la Navarra!”
O título nobiliárquico ad
hoc foi prata de pouca dura. Poucos anos depois, a mina inundou-se e a
família ficou em apertos financeiros. A duas horas da cidade de Guanajuato, na
Serra de Santa Rosa, Asunción faz hoje parte do roteiro de “turismo de
aventura” das minas fantasma da região.
Tio Benito, o Cavaleiro
Voador
Embora Inés seja a figura mais recordada pelas velhas
gerações da família Rivera, uma placa comemorativa na casa dos Acosta celebra: “O
Engenheiro Benito León Acosta, primeiro aeronauta mexicano, nasceu nesta casa (...)”.
O marco é importante para a história do México. O tio-avô de Diego foi a primeira pessoa a voar nos céus do país. Corria o ano de 1842. “Ele trouxe o primeiro balão de ar quente (…), tinha aprendido essa arte na França e na Holanda”, relata a autora Loló de la Torriente em “Memória e Razão de Diego Rivera”.
Nessa época, Benito era um verdadeiro herói nacional. O
Presidente da República de então, Santa Anna, nomeou-o Cavaleiro da Ordem de
Guadalupe e outorgou-lhe a exclusividade para voar no México durante três anos.
Ainda hoje, o aeronauta pioneiro é homenageado no Festival de Balão de Ar
Quente de León, o terceiro maior evento do género a nível mundial, que todos
os anos sobe aos céus desta cidade a 60 quilómetros de Guanajuato.
Os feitos do tio de Inés são bem conhecidos, mas a placa comemorativa
da velha casa acaba por troca-nos as voltas. A inscrição diz também que o
aeronauta nasceu neste casarão a “11 de Abril de 1819”, isto é, três ou quatro anos
antes da chegada da sua própria família ao México. No livro de memórias “Dois
Diegos Dois Riveras”, a filha do muralista, Guadalupe, baralha ainda mais as
cartas: a placa “diz que ele é originário de Guanajuato, mas sabemos que veio
de Portugal”.
Festival de Balão de Ar Quente de León. Fonte: Festivales de México |
Contradição? Talvez não. A historiadora Alicia Gojman apresenta à NM uma hipótese: “Na altura em que essa família chegou, o México acabava de se tornar independente e a memória da Inquisição estava ainda bastante fresca. Foram muitas as pessoas que chegaram e não se declararam judias.” No caso de Benito Acosta, a académica levanta a possibilidade de uma “reinvenção da identidade”, como artifício para escapar a possíveis ameaças antissemitas.
Em busca de pistas, NM solicitou ao Arquivo Histórico de
Guanajuato acesso às certidões de nascimento do século XIX da cidade. No
entanto, o registo mais antigo data de 1869, cinquenta anos depois da
encruzilhada biográfica dos Acosta. O mistério permanece por resolver.
Parte II: A memória e a fábula
Reportagem publicada na Notícias Magazine/Jornal de Notícias (02/09/2018)
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