Nha Balila, Bala de Aço

“O meu coração é doce. O meu corpo é corpo sabi. O meu sangue está espalhado pelo mundo inteiro. A minha conversa é conversa boa. A minha palavra fala o sentimento. Que toda a vista veja por mim. Eu tenho cá dentro um violino que é o som do coração”. Nha Balila em auto-psicografia. Uma homenagem que, neste mês da mulher, Kriolidadi faz a esta figura que já se tornou a voz e a imagem do povo pobre e anónimo da Praia.

Fonte: Lusa

Surge à porta da sua casa em Tira-Chapéu com um sorriso rasgado e de braços abertos. Energia e força logo transformadas em movimento de pés e ancas, ao ritmo de um batuque improvisado com as mãos. Para Nha Balila, nominho de Isidora Semedo Correia, a musicalidade desta tradição, que aprendeu com a mãe, é uma forma de “prestar homenagem” ao que foi a sua vida.

É um espaço de tempo que conta já com 75 anos, um percurso que começou numa casa na Serra Malagueta, “no alto de um cutelo onde se vê, lá no fundo, a Ribeira Principal”. Aí nasceu a 12 de Dezembro de 1929, e aí viveu 25 anos a “semear milho, mondar palha e recolher a lantuna que servia como lenha para poder cozinhar a cachupa”. A vida dura no interior de Santiago estava moldada pelos caprichos da natureza e pela vinda das “águas do reino” que a levou para longe, acompanhando o fluxo de emigração cabo-verdiana para São Tomé e Príncipe. Estávamos em 1944. 

Mulher coragem

Nha Balila recorda os dias vividos nas várias roças por onde passou, como “tempos muito duros”. “Os patrões do mato obrigavam os contratados a recolher todos os dias seis tinas de cacau e, se não o fizessem, tinham que ficar no mato durante a noite até acabar o serviço”. “Este sofrimento explodiu” num dia em que Nha Balila fez jus ao significado do seu nome, “bala de aço que gosta de lidar com as pessoas”. A história passou-se na roça Vaz Prazeres: “Um dia estava no mato a trabalhar quando o feitor branco começou a chamar-me nomes. Pedi-lhe para parar, porque não estava a gostar, e então ele deu-me uma bofetada. Como não sou de me deixar ficar, peguei-o pelo colarinho, puxei-o contra mim e atirei-o para o chão”. Tal episódio precipitou o seu regresso a Cabo Verde, onde permaneceu pouco tempo, retornando novamente ao arquipélago santomense. Nos anos seguintes, Nha Balila trabalharia ainda nas roças Dona Augusta e Monte Café, intercalando a “labuta” com curtas viagens a Cabo Verde.


Regressou definitivamente à sua terra crioula em 1966, fixando-se desde então na Praia, em Tira-Chapéu. A cegueira parcial, que começava a manifestar-se na altura, não lhe permitia fazer grandes trabalhos, mas Nha Balila não se queixa, afirmando até que, “principalmente a partir da independência” a sua vida “começou a ser muito boa”. Nessa altura, começou a trabalhar no Parque 5 de Julho onde “juntava cascalho”. Algum tempo depois começou a receber ajuda da Cruz Vermelha e depois uma pensão social.

Abandonada pelo marido depois de ter sido atropelada em 1975, e com duas filhas a seu cargo, Nha Balila levou a vida adiante, com a determinação que lhe é característica, ganhando o carinho “de toda a gente”. “Nunca tive medo de pedir, porque pedir não é vergonha; vergonha é roubar”, afirma. Este “espírito inquieto” foi determinante para construir a casa onde vive actualmente. A moradia precisa agora de uma pintura, para a qual Nha Balila pede a ajuda de todos. “Já tenho as tintas, agora estou a tentar encontrar um pintor que se disponibilize a pintá-la, ou que me faça um preço que possa pagar”, diz. O apelo está lançado.

Foi exactamente este “atrevimento” que deu fama a Nha Balila e que ela usa como arma para ajudar o seu bairro, principalmente as crianças e os mais velhos. “A gente de cá sabe que sou conhecida, então vêm-me bater à porta para os ajudar. Quando isso acontece, tento depois falar com os meus amigos das organizações, para ver se podem fazer alguma coisa por essa gente”, conta.

Mas é através da rádio mais se tem projectado. Participante activa e crítica nos programas radiofónicos, a enérgica senhora faz questão de, sempre que pode, dar a sua opinião sobre as questões nacionais. Muitos garantem que “ela vê mais do que muita gente que tem bons olhos”. Sentada na primeira fila dos “debates de domingo, entre os políticos”, esta formadora de opinião explica que gosta de participar porque “os partidos só falam mal uns dos outros e dizem pouca coisa que interesse à gente”. Imitando o discurso que ouve na rádio a velha senhora relata: “um diz que o governo não fez nada e que tudo o que existe foi feito por ele; vem o outro e responde e diz que é mentira, que ele é que fez”, Com voz forte, demonstrando alguma irritação, Nha Balila afirma que “todos já fizeram um pouco, e não é bom andarem a dizer estas coisas, porque a democracia é levantar-se do chão, não calcarem-se uns aos outros”.

Fonte: Lusa

As ideias expressas de forma acutilante durante longos minutos no ar acarretam custos. “Ao contrário do que dizem, Nha Balila paga o telefone, sim senhor!”. No entanto, esta mulher encontrou uma forma de diminuir o preço das ligações. Qual a estratégia? “Ligo para o 111, digo o número do sítio para onde quero ligar e desligo. Passado algum tempo a pessoa com quem quero falar liga-me, e eu não gasto quase dinheiro nenhum”, explica com um sorriso.

A mulher cabo-verdiana

Nha Balila para pensar quando o tema é a situação da mulher cabo-verdiana. Depois de um breve silêncio, põe as mãos nas ancas e comenta: “A situação da mulher neste país já se desenvolveu muito, é só ver que já há mulheres ministras, juristas, empresárias, deputadas”. No entanto, diz, “ainda há muita coisa a correr mal”. Para Nha Balila, “ainda há muito medo de enfrentar o homem, há muitas mulheres a viverem cheias de medo e com receio de chegar às autoridades e dizerem o que o marido lhes faz”.

“O homem e a mulher têm que ser iguais”, atira. “O homem pode não ter o período de nove meses, nem peito para amamentar o filho, mas tem cinco dedos, duas orelhas que ouvem para a esquerda e para a direita, um nariz e dois braços, tal qual a mulher”, razão pela qual, defende, “o homem tem que ajudar a esposa em casa e respeitá-la, porque são iguais”.

Com a bandeira da igualdade de género, Nha Balila termina o discurso onde ainda cabem muitas histórias, muitas visões coloridas percepcionadas por trás de um par de óculos com pouca utilidade. Com as mãos percorre a cara, os cabelos e os olhos de quem dela se despede, captando, então, o que as vozes que ouve não a deixam adivinhar. Nha Balila, bala de aço doce.

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