Haiti. “O horizonte foi embora, ficou sozinho no mundo”
Um polícia a cavalo, chicote na mão, chapéu à cowboy, persegue um migrante haitiano que corre no deserto do Texas. Ele, o corpo negro, acelera, finta os arbustos rasteiros da terra árida e tropeça. A imagem é real, a indignação nem tanto. Nos últimos dias, milhares de migrantes do Haiti aglomeram-se na fronteira entre o México e os Estados Unidos. A verborreia que tenta justificar a violência contra os ilhéus é muita e cansa. Refugiamo-nos na poesia, canto seguro e transparente. O Haiti migrante e resistente entrelaçado nos poemas de René Depestre.
Na encruzilhada em que vivo, terra mexicana, migrantes de todo o mundo trilham caminhos habitados por coites – os que uivam e os que sequestram e matam. Deambulam pelas ruas, mochilas às costas, sozinhos ou famílias completas. Na luz vermelha dos semáforos, alinham-se nas filas dos carros. Mostram os passaportes, moedas e notas de onde vêm. Honduras, El Salvador, outras terras desconhecidas. Unem a ponta dos cinco dedos das duas mãos e num gesto rápido levam-nas à boca. “Tenho fome”, dizem em silêncio. Ao lado, farrapos a rigor, mexicanos tentam-se misturar no peditório migrante. Imitam o sotaque centro-americano, põe cara de sofrimento, dão pena a eles mesmos. Inventam histórias de migração para ganhar umas moedas à custa da tragédia alheia.
“Conhecem a receita do tio Lebrun?
Um bom lombo de haitiano na brasa,
Entrecosto com batatas de necromantes,
Onda de história humana azulada,
De tanto sangrar em lenha de infâmias.
Haitiano-bife vivendo o inferno
Num terço de ilha onde circula o destino
Longe dos convidados para a comédia,
Submetidos os músculos, leiloados no tempo
Dos mercadores negros e brancos da globalização.
No país primeiro produtor mundial
De desgraças e de zombies,
Eu voto contra o pneu incendiado,
Contra o espaço e o tempo loucos
Em que nos convertem na chama do Tito Lebrun!
Eu voto por Toussaint Louverture
Contra o eterno regresso do chicote ao meu lombo.
Corro fugindo da velha
Ordem gémea bárbaro/civilizado;
A toda velocidade deixo para sempre
A casa em chama das barbáries:
Sou um matinal voltar a começar,
Meu carnaval madruga para ir
A-votar-ao-sol-de-uma-arte-de-viver-juntos.”
O Haiti alimenta-se desse misticismo do primeiro país negro do mundo. Mas a revolta dos escravos liderada por Toussaint Louverture, em 1793, acabou numa independência que lhes carimbou a miséria de onde nunca saíram. A fatura bilionária do ex-colono, França, obrigou o país a pagar 24 milhões de francos como indemnização pela perda das plantações de cana de açúcar dos produtores coloniais. Apenas em 1947 a dívida foi saldada, 122 depois da lategada creditícia.Náufragos da ilha de todas as tragédias – a dos homens e as da terra que ruge – os haitianos que hoje são chicoteados no deserto gringo carregam estas marcas. Os números sobram. PIBs, estatísticas, índices, equações e soluções tecnocratas cansam. Nada explicam, nada resolvem, aqui o turbilhão é constante. “Mataram o presidente!”, escandizaram-se há uns meses. “O presidente roubou e usurpou o poder”, gritou um povo cansado que tem vindo a ocupar as ruas das principais cidades do país em fúria contra o roubo institucionalizado, a corrupção e nepotismo. “O povo rouba, mata, sequestra”, alertam as autoridades. “Enlouquecemos, sobrevivemos, avançamos”, respondem.
São ilhéus em deriva continental. O “Caos haitiano”.
“Aberta está uma desdita-tigre
Entre a vida e eu: pode uma pessoa
Dominar o caos haitiano nos seus dias?
Pode uma pessoa conter nas suas veias de nómada
O fluxo existencial de tempos de solidão?
Todo o ultra-mundo mundial de noturna desolação
Continua a oferecer braços de mar que cruzar
Um mal-estar não interrupto enrosca-se sem fim
Em adeus de ternura ao golfo de Jacel.
Uma pessoa pode passar a sua vida de poeta derrotado,
Exilado nos sete dias da semana.
Tendo ante mim os dias contados
Sou o cavalo sudoroso das minhas raízes.”
Aterrados nos escombros de terramotos dinamite, treme-lhes o destino ao buscar rotas de escape. Há uma semana, na cidade chilena de Iquique, milhares de manifestantes reunidos sob o lema “No+migrantes” queimaram as poucas pertenças e as muitas tendas onde haitianos se alojavam quando tentavam entrar no país por pontos cegos da fronteira. O Chile e o Brasil receberam um número importante de migrantes do país caribenho, sobretudo depois do violento terramoto de 2010. Não ficam muito tempo, um par de anos. Dali, dão um salto inevitável América acima, por selvas, serras, desertos e mares até aos Estados Unidos.
São infinitas, as tormentas. “Intempéries 99”.
“Mais além das vinhas naufragadas
Mais além das casas rebentadas
E dos sonhos esfumados,
Mais além dos olhos que tudo perderam,
Mais além das vidas que a chuva humilhou,
Na ferida mais viva do espírito
A cicatriz vai fazendo a sua obra de ternura:
Os inocentes pássaros aprendem a cantar
De novo no silêncio das gentes.”
Neste silêncio, voltar a casa não é aconchego. Depois da caçaria na última semana nos EUA, centenas de haitianos foram deportados para o Haiti. As cenas do regresso a casa são violentas. Há dias, um grupo de haitianos acabados de aterrar em Porto Príncipe tentou desesperadamente evitar o desembarque. A violência e a confusão tomaram de assalto o aeroporto da capital haitiana.
Estão de volta ao berço onde se embalam por inércia depois de viagens e pés cansados. Vivem na esperança de sair. A ilha há muito que não é casa. Com os olhos postos na próxima oportunidade, marcados pelas memórias, vivem uma longa “Cerimónia dos Adeuses”.
“Eis aqui a sua vida levada pelo fluxo magnético
Que regula os seus dias e as suas viagens de poeta;
Um trote de burro num caminho de cabras
Um voo em espiral de aeroplano sobre
O velho cemitério marinho de infâncias
Um tratado de erotismo chinês justo antes
De ir-se nos gritos de amor das mulheres.
Do sino basilical ao carrilhão
Esvaziado no metal em fusão da mulher.
O futuro pereceu à frente do viajante.
O horizonte foi-se embora, ficou sozinho no mundo:
Que tempo de esperança fará no país natal?
Um radiante outono de sabedoria responde
Ao espírito protegido contra a saudade.
Muito de manhã corre no dorso de um burro
Buscando bolos de mandioca e leite das lembranças.
Com o corpo fechado a utopias como uma presa toma
A senda da vida onde tudo se inveja.
Um grande jardim de sonho ajuda nos seus trabalhos
O arrebatamento de um perpétuo mês de junho.
É memória da vida e da morte
É o auge adulto da maturidade
Na tarde em que o pó regressa
A poesia de um eterno sol de marmelo
Abre as suas exéquias ao adeus das mulheres
Brilhará o seu sol um longo tempo nas suas cinzas.
Regressa ao limbo louco do bem e do mal:
E extingue-se no leito das trevas.
Sobre os seus ilhotes de sombra cai, sem piedade, a noite.
A polícia fronteiriça perseguiu os migrantes haitianos a cavalo e com chicotes (BBC) |
Na encruzilhada em que vivo, terra mexicana, migrantes de todo o mundo trilham caminhos habitados por coites – os que uivam e os que sequestram e matam. Deambulam pelas ruas, mochilas às costas, sozinhos ou famílias completas. Na luz vermelha dos semáforos, alinham-se nas filas dos carros. Mostram os passaportes, moedas e notas de onde vêm. Honduras, El Salvador, outras terras desconhecidas. Unem a ponta dos cinco dedos das duas mãos e num gesto rápido levam-nas à boca. “Tenho fome”, dizem em silêncio. Ao lado, farrapos a rigor, mexicanos tentam-se misturar no peditório migrante. Imitam o sotaque centro-americano, põe cara de sofrimento, dão pena a eles mesmos. Inventam histórias de migração para ganhar umas moedas à custa da tragédia alheia.
Há vários anos que os haitianos se juntam a esta multidão que passa pela cidade onde vivo, Querétaro, montados em “La Bestia”, o comboio de carga que vem do sul e passa pelo centro do país rumo à fronteira norte. Invisíveis durante bastante tempo, estão agora no olho do furacão. Esta semana, mais de 13 mil aglomeraram-se na fronteira entre o México e os EUA, forçando a passagem. São a nova “horda de invasores e esfomeados” a abater por governos do sul ao norte do continente.
No seu desespero, são faíscas e combustível. Um “Pneu Incendiado”. René Depestre.“Conhecem a receita do tio Lebrun?
Um bom lombo de haitiano na brasa,
Entrecosto com batatas de necromantes,
Onda de história humana azulada,
De tanto sangrar em lenha de infâmias.
Haitiano-bife vivendo o inferno
Num terço de ilha onde circula o destino
Longe dos convidados para a comédia,
Submetidos os músculos, leiloados no tempo
Dos mercadores negros e brancos da globalização.
No país primeiro produtor mundial
De desgraças e de zombies,
Eu voto contra o pneu incendiado,
Contra o espaço e o tempo loucos
Em que nos convertem na chama do Tito Lebrun!
Eu voto por Toussaint Louverture
Contra o eterno regresso do chicote ao meu lombo.
Corro fugindo da velha
Ordem gémea bárbaro/civilizado;
A toda velocidade deixo para sempre
A casa em chama das barbáries:
Sou um matinal voltar a começar,
Meu carnaval madruga para ir
A-votar-ao-sol-de-uma-arte-de-viver-juntos.”
Há bastantes anos que milhares de haitianos migram ilegalmente para os Estados Unidos, mas nas últimas semanas o movimento ganhou uma pexpressão inusitada (Julio Cortez - AP) |
Haitianos cruzam o rio Bravo para os Estados Unidos (Julio Cortez - AFP) |
São ilhéus em deriva continental. O “Caos haitiano”.
“Aberta está uma desdita-tigre
Entre a vida e eu: pode uma pessoa
Dominar o caos haitiano nos seus dias?
Pode uma pessoa conter nas suas veias de nómada
O fluxo existencial de tempos de solidão?
Todo o ultra-mundo mundial de noturna desolação
Continua a oferecer braços de mar que cruzar
Um mal-estar não interrupto enrosca-se sem fim
Em adeus de ternura ao golfo de Jacel.
Uma pessoa pode passar a sua vida de poeta derrotado,
Exilado nos sete dias da semana.
Tendo ante mim os dias contados
Sou o cavalo sudoroso das minhas raízes.”
Aterrados nos escombros de terramotos dinamite, treme-lhes o destino ao buscar rotas de escape. Há uma semana, na cidade chilena de Iquique, milhares de manifestantes reunidos sob o lema “No+migrantes” queimaram as poucas pertenças e as muitas tendas onde haitianos se alojavam quando tentavam entrar no país por pontos cegos da fronteira. O Chile e o Brasil receberam um número importante de migrantes do país caribenho, sobretudo depois do violento terramoto de 2010. Não ficam muito tempo, um par de anos. Dali, dão um salto inevitável América acima, por selvas, serras, desertos e mares até aos Estados Unidos.
São infinitas, as tormentas. “Intempéries 99”.
“Mais além das vinhas naufragadas
Mais além das casas rebentadas
E dos sonhos esfumados,
Mais além dos olhos que tudo perderam,
Mais além das vidas que a chuva humilhou,
Na ferida mais viva do espírito
A cicatriz vai fazendo a sua obra de ternura:
Os inocentes pássaros aprendem a cantar
De novo no silêncio das gentes.”
13 mil haitianos tentaram entrar nos Estados Unidos na fronteira do México com o Texas (BBC) |
Estão de volta ao berço onde se embalam por inércia depois de viagens e pés cansados. Vivem na esperança de sair. A ilha há muito que não é casa. Com os olhos postos na próxima oportunidade, marcados pelas memórias, vivem uma longa “Cerimónia dos Adeuses”.
“Eis aqui a sua vida levada pelo fluxo magnético
Que regula os seus dias e as suas viagens de poeta;
Um trote de burro num caminho de cabras
Um voo em espiral de aeroplano sobre
O velho cemitério marinho de infâncias
Um tratado de erotismo chinês justo antes
De ir-se nos gritos de amor das mulheres.
Do sino basilical ao carrilhão
Esvaziado no metal em fusão da mulher.
O futuro pereceu à frente do viajante.
O horizonte foi-se embora, ficou sozinho no mundo:
Que tempo de esperança fará no país natal?
Um radiante outono de sabedoria responde
Ao espírito protegido contra a saudade.
Muito de manhã corre no dorso de um burro
Buscando bolos de mandioca e leite das lembranças.
Com o corpo fechado a utopias como uma presa toma
A senda da vida onde tudo se inveja.
Um grande jardim de sonho ajuda nos seus trabalhos
O arrebatamento de um perpétuo mês de junho.
É memória da vida e da morte
É o auge adulto da maturidade
Na tarde em que o pó regressa
A poesia de um eterno sol de marmelo
Abre as suas exéquias ao adeus das mulheres
Brilhará o seu sol um longo tempo nas suas cinzas.
Regressa ao limbo louco do bem e do mal:
E extingue-se no leito das trevas.
Sobre os seus ilhotes de sombra cai, sem piedade, a noite.
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