Lesther
São tempos difíceis na Nicarágua. A três meses das eleições presidenciais, o regime de Daniel Ortega aperta o espartilho e detém candidatos da oposição, ativistas e jornalistas críticos. A Nicarágua está desde 2018 numa profunda crise política. Lesther Alemán, o jovem que confrontou o presidente e o chamou de assassino foi detido no início de julho. É uma das caras dos dias tensos e incertos na terra dos lagos e vulcões.
Em março de 2018 disparou-se o gatilho nas ruas de Manágua. Uma polémica reforma do sistema de Segurança Social agitou o país liderado por Daniel Ortega, antigo guerrilheiro da mítica Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). A repressão foi imediata. Nos meses seguintes, militares, polícias e paramilitares sufocaram os protestos. Na pior crise política no país desde a guerra civil dos anos 80, quatrocentos nicaraguenses morreram e milhares foram detidos, muitos desapareceram. Uma multidão de ativistas e opositores saiu para o exílio, sobretudo para a vizinha Costa Rica. Outros mergulharam na clandestinidade.
Antes de ter a cabeça a prémio, Lesther Alemán era um estudante de Comunicação Social com o dom da palavra. Tinha 20 anos e integrava a Aliança Universitária Nicaraguense. Com o país a ferro e fogo, em abril de 2018 uma mesa de diálogo entre Ortega e os opositores tentava encontrar uma saída para o caos que se arrastava há um mês. Quando o jovem de 20 anos - óculos de armação grossa e voz grave, quase cerimonial - pegou no microfone a sala congelou. “Cesse agora mesmo, de imediato, os ataques, a repressão e assassinatos das forças paramilitares e das suas tropas (…) Esta não é uma mesa de diálogo, é uma mesa para negociar a sua saída e o senhor sabe muito bem disso, porque é o povo quem o está a pedir. Renda-se perante o povo!” Com a bandeira azul e branca da Nicarágua ao pescoço, Lesther soltava a fúria: “Não podemos dialogar com um assassino, porque o que se cometeu neste país é um genocídio!”
Em entrevista ao El País desde um ponto não determinado de Manágua, Lesther Alemán não se surpreende com o que sucede. “Daniel Ortega quer fazer tudo o possível para que os opositores se retirem da corrida eleitoral. Tem uma estratégia de sufoco político, económico e social para que a oposição se desarme”. A intenção do presidente, opina, é colocar-se numa posição de vantagem para “estabelecer algum tipo de negociação” antes ou depois das eleições. Basicamente, “envia a mensagem de que ‘vou por todos e contra todos’”.
Perante a tensão crescente e as acusações de orquestrar uma repressão seletiva para permanecer no poder, Ortega mantém-se impassível. Acusa os nicaraguenses detidos de tentarem fazer um golpe de estado com o apoio dos EUA, argumento também usado durante a crise de 2018. “Aqui não estamos a julgar políticos nem candidatos. Estamos a julgar criminosos que atentaram contra o país”, atirou em junho deste ano.
Poucos dias depois, durante as comemorações dos 42 anos do triunfo da revolução sandinista, voltou a insistir: “O império quer submeter a Federação Russa, a República Popular da China. Estão loucos! As potências querem submeter nações como a Nicarágua.” Uma clara alusão às sanções económicas que os EUA e a União Europeia aplicaram a personagens ligadas ao poder. “É a mesma narrativa não superada da década dos 80, em que se criou o mito de que se confronta um império”, comentou na altura Lesther. “Um império que não existe porque a condenação é mundial.”
As noites de terror
Na noite de 5 de julho passado, Lesther enviou aos companheiros uma mensagem seca: “A Polícia”. Não precisaram de mais palavras para entender o que acontecia. Por volta das 21 horas, seis patrulhas com dezenas de oficiais da Polícia Nacional rodearam a casa da mãe de Lesther, onde o ativista visitava a família. Forçaram um portão e entraram com estrondo. Levaram o jovem de 23 anos aos empurrões até uma viatura que desapareceu a alta velocidade. “Foi um sequestro”, acusou à imprensa a mãe do estudante.
Noutro lado de Manágua, numa ação simultânea, a polícia prendia outro elemento fundamental do movimento juvenil de oposição ao presidente, Max Jerez. Tal como Lesther, vivia numa “casa de segurança”, escondido das autoridades. Num comunicado, a Polícia Nacional acusou-os de serem os “cabecilhas de invasão e destruição” da Universidade Politécnica da Nicarágua, onde terão cometido os “delitos de roubo com intimidação (assaltos), sequestros, lesões graves, violações, extorsões, destruição e danos múltiplos durante a tentativa falhada de golpe de Estado de 2018”. Ao mesmo tempo, imputavam-nos de “realizar atos que atentam conta a independência, soberania e autodeterminação” da Nicarágua.
Para os dois amigos e membros da Aliança Universitária Nicaraguense a detenção pôs fim a um longo período na clandestinidade. No dia depois, Dolly Mora, também ela ativista e companheira dos dois detidos, resumia a paranoia dos últimos três anos. “Desde 2018, saímos das nossas casas para que não fizessem nada às nossas famílias. Aprendemos estratégias de segurança, até de contrainteligência. Sabes se te observam de determinada maneira, se vão atrás de ti, se aceleras o passo e eles também.” Neste “jogo que te pretende derrubar”, diz, é de madrugada que as redadas apanham os opositores de surpresa. “Na Nicarágua, a noite converteu-se em sinónimo de medo e de terror para muitos”, comentou o bispo Rolando Álvarez.
Desde essa noite de 5 de julho que Lesther e Max estão detidos em “El Chipote”, prisão que ficou conhecida em 2018, quando centenas de opositores de Daniel Ortega aí foram encarcerados e torturados. Como há três anos, as visitas estão proibidas. Os familiares acusam o regime de negar-lhes um acompanhamento jurídico imparcial.
Lesther Alemán foi detido no dia 5 de julho, em Manágua (El País) |
Antes de ter a cabeça a prémio, Lesther Alemán era um estudante de Comunicação Social com o dom da palavra. Tinha 20 anos e integrava a Aliança Universitária Nicaraguense. Com o país a ferro e fogo, em abril de 2018 uma mesa de diálogo entre Ortega e os opositores tentava encontrar uma saída para o caos que se arrastava há um mês. Quando o jovem de 20 anos - óculos de armação grossa e voz grave, quase cerimonial - pegou no microfone a sala congelou. “Cesse agora mesmo, de imediato, os ataques, a repressão e assassinatos das forças paramilitares e das suas tropas (…) Esta não é uma mesa de diálogo, é uma mesa para negociar a sua saída e o senhor sabe muito bem disso, porque é o povo quem o está a pedir. Renda-se perante o povo!” Com a bandeira azul e branca da Nicarágua ao pescoço, Lesther soltava a fúria: “Não podemos dialogar com um assassino, porque o que se cometeu neste país é um genocídio!”
O confronto com Daniel Ortega ditou-lhe a sentença. Nesse momento, cometeu o “pecado” de “demonstrar que alguém que muitos julgavam divino era mortal”, recordava numa entrevista à EFE. Mais recentemente, em conversa com o El País, comentava que “increpar Ortega significou uma mudança radical de vida”. “Vivi a perseguição, a vida clandestina, pausas nos meus estudos. Os meus pais foram perseguidos, vivi a separação da minha família e tenho obviamente os traumas de uma geração marcada por uma pessoa que se aparafusa ao poder. Não posso ir a um lugar público com tranquilidade. Nem sequer ir à igreja, porque tenho que permanecer num lugar clandestino.”
Poucos meses depois do frente-a-frente com Ortega, Lesther deixou a Nicarágua. Andou por vários lugares, sobretudo os Estados Unidos. Regressou a Manágua em 2019, mergulhando de imediato na clandestinidade. Num caldeirão a fogo brando, o país não deixou de ebulir nos últimos três anos. Neste período, o governo libertou 500 pessoas detidas nos confrontos de 2018. Reforçou a aliança com a Rússia. E começou a preparar-se para as presidenciais do próximo dia 7 de novembro. Daniel Ortega, que governa desde 2007, é candidato a um quarto mandato consecutivo pela Frente Sandinista.
Nos últimos meses, o contrarrelógio eleitoral reacendeu a tensão no território inflamável que é a Nicarágua. Imparável, a Polícia Nacional deteve pelo menos 33 opositores e críticos de Daniel Ortega. A galeria de prisioneiros inclui sete pré-candidatos às presidenciais de novembro, golpe que desmembrou a oposição da cabeça aos pés. Jornalistas, dois ex-vice-presidentes, uma ex-primeira-dama (e o seu motorista), opositores, dirigentes camponeses e estudantis, também trabalhadores de organizações não-governamentais e até guerrilheiros históricos da Frente Sandinista, as detenções dispararam em várias direções. Quase todos são acusados de delito de “traição da pátria”; outros, de lavagem de dinheiro e negócios obscuros, como Cristiana Chamorro, uma das pré-candidatas presidenciais mais populares.
Poucos meses depois do frente-a-frente com Ortega, Lesther deixou a Nicarágua. Andou por vários lugares, sobretudo os Estados Unidos. Regressou a Manágua em 2019, mergulhando de imediato na clandestinidade. Num caldeirão a fogo brando, o país não deixou de ebulir nos últimos três anos. Neste período, o governo libertou 500 pessoas detidas nos confrontos de 2018. Reforçou a aliança com a Rússia. E começou a preparar-se para as presidenciais do próximo dia 7 de novembro. Daniel Ortega, que governa desde 2007, é candidato a um quarto mandato consecutivo pela Frente Sandinista.
Nos últimos meses, o contrarrelógio eleitoral reacendeu a tensão no território inflamável que é a Nicarágua. Imparável, a Polícia Nacional deteve pelo menos 33 opositores e críticos de Daniel Ortega. A galeria de prisioneiros inclui sete pré-candidatos às presidenciais de novembro, golpe que desmembrou a oposição da cabeça aos pés. Jornalistas, dois ex-vice-presidentes, uma ex-primeira-dama (e o seu motorista), opositores, dirigentes camponeses e estudantis, também trabalhadores de organizações não-governamentais e até guerrilheiros históricos da Frente Sandinista, as detenções dispararam em várias direções. Quase todos são acusados de delito de “traição da pátria”; outros, de lavagem de dinheiro e negócios obscuros, como Cristiana Chamorro, uma das pré-candidatas presidenciais mais populares.
Em entrevista ao El País desde um ponto não determinado de Manágua, Lesther Alemán não se surpreende com o que sucede. “Daniel Ortega quer fazer tudo o possível para que os opositores se retirem da corrida eleitoral. Tem uma estratégia de sufoco político, económico e social para que a oposição se desarme”. A intenção do presidente, opina, é colocar-se numa posição de vantagem para “estabelecer algum tipo de negociação” antes ou depois das eleições. Basicamente, “envia a mensagem de que ‘vou por todos e contra todos’”.
Perante a tensão crescente e as acusações de orquestrar uma repressão seletiva para permanecer no poder, Ortega mantém-se impassível. Acusa os nicaraguenses detidos de tentarem fazer um golpe de estado com o apoio dos EUA, argumento também usado durante a crise de 2018. “Aqui não estamos a julgar políticos nem candidatos. Estamos a julgar criminosos que atentaram contra o país”, atirou em junho deste ano.
Poucos dias depois, durante as comemorações dos 42 anos do triunfo da revolução sandinista, voltou a insistir: “O império quer submeter a Federação Russa, a República Popular da China. Estão loucos! As potências querem submeter nações como a Nicarágua.” Uma clara alusão às sanções económicas que os EUA e a União Europeia aplicaram a personagens ligadas ao poder. “É a mesma narrativa não superada da década dos 80, em que se criou o mito de que se confronta um império”, comentou na altura Lesther. “Um império que não existe porque a condenação é mundial.”
As noites de terror
Na noite de 5 de julho passado, Lesther enviou aos companheiros uma mensagem seca: “A Polícia”. Não precisaram de mais palavras para entender o que acontecia. Por volta das 21 horas, seis patrulhas com dezenas de oficiais da Polícia Nacional rodearam a casa da mãe de Lesther, onde o ativista visitava a família. Forçaram um portão e entraram com estrondo. Levaram o jovem de 23 anos aos empurrões até uma viatura que desapareceu a alta velocidade. “Foi um sequestro”, acusou à imprensa a mãe do estudante.
Noutro lado de Manágua, numa ação simultânea, a polícia prendia outro elemento fundamental do movimento juvenil de oposição ao presidente, Max Jerez. Tal como Lesther, vivia numa “casa de segurança”, escondido das autoridades. Num comunicado, a Polícia Nacional acusou-os de serem os “cabecilhas de invasão e destruição” da Universidade Politécnica da Nicarágua, onde terão cometido os “delitos de roubo com intimidação (assaltos), sequestros, lesões graves, violações, extorsões, destruição e danos múltiplos durante a tentativa falhada de golpe de Estado de 2018”. Ao mesmo tempo, imputavam-nos de “realizar atos que atentam conta a independência, soberania e autodeterminação” da Nicarágua.
Para os dois amigos e membros da Aliança Universitária Nicaraguense a detenção pôs fim a um longo período na clandestinidade. No dia depois, Dolly Mora, também ela ativista e companheira dos dois detidos, resumia a paranoia dos últimos três anos. “Desde 2018, saímos das nossas casas para que não fizessem nada às nossas famílias. Aprendemos estratégias de segurança, até de contrainteligência. Sabes se te observam de determinada maneira, se vão atrás de ti, se aceleras o passo e eles também.” Neste “jogo que te pretende derrubar”, diz, é de madrugada que as redadas apanham os opositores de surpresa. “Na Nicarágua, a noite converteu-se em sinónimo de medo e de terror para muitos”, comentou o bispo Rolando Álvarez.
Desde essa noite de 5 de julho que Lesther e Max estão detidos em “El Chipote”, prisão que ficou conhecida em 2018, quando centenas de opositores de Daniel Ortega aí foram encarcerados e torturados. Como há três anos, as visitas estão proibidas. Os familiares acusam o regime de negar-lhes um acompanhamento jurídico imparcial.
A “Nicarágua tão violentamente doce” que Cortázar descreveu, berço dos guerrilheiros sandinistas que derrubaram a ditadura de Somoza em 1979 já não existe, alertam os cronistas. Durante a mesa de diálogo de 2018 que pôs Lesther Alemán na mira de Daniel Ortega, o jovem cravou-lhe o dedo onde mais doía. “O senhor destruiu o país num só mês, de uma forma que a Somoza lhe demorou anos. Em menos de um mês, o senhor fez coisas que nunca imaginámos ser possíveis. Muitos foram defraudados por esses ideais que não se cumpriram (…) quando prometeram a esta pátria que seria livre. Hoje continuamos escravos, continuamos a ser submetidos, marginalizados.”
Ao El País, pouco tempo antes da detenção, Lesther assumia que estava num beco sem saída. “A Nicarágua transformou-se numa prisão que se estende até às suas fronteiras e condenaram-nos a dois cenários: prisão ou morte”. “Ao não ter nada e ter perdido tudo, o único que me resta é o meu país”.
Ao El País, pouco tempo antes da detenção, Lesther assumia que estava num beco sem saída. “A Nicarágua transformou-se numa prisão que se estende até às suas fronteiras e condenaram-nos a dois cenários: prisão ou morte”. “Ao não ter nada e ter perdido tudo, o único que me resta é o meu país”.
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