Os ninguéns
Música–guião: De Ushuaia a la Quiaca, Gustavo Santaolalla
Fala-se no horror de uma presidente-marioneta, Jeanine Áñez, que há um ano entrou no parlamento boliviano de Bíblia em riste e discurso a condizer: “A nossa força é Deus!” Missão evangelizadora ao estilo quinhentista, no meio do tumulto das eleições de outubro de 2019, em que Evo foi acusado de fazer uma finta à Constituição para se recandidatar e, votos contados, de manipular os resultados a seu favor. A imagem da ex-apresentadora de televisão com os olhos esbugalhados a assumir uma presidência interina constitucionalmente duvidosa, apoiada pela suspeitíssima Organização de Estados Americanos (OEA), ainda hoje dá que falar. “Foi golpe!”, fala-se e contra-fala-se.
Os indígenas bolivianos em luta nas ruas da Bolívia contra o que dizem ser o governo golpista de Jeanine Áñez (PCR)
Ilustram-se também os ícones. Evo Morales, claro, mas também os que ficaram na Bolívia todo este tempo, arriscando a vida enquanto o ex-presidente se refugiava entre o México e a Argentina. É neste parlatório cruzado que surge de novo Patrícia Arce. A 6 de novembro de 2019, quando manifestações anti-Evo violentavam as ruas do país, a presidente do município de Vinto, na província de Quillacollo, Cochabamba (região centro), foi arrancada à força da câmara municipal por uma turba de apoiantes de Áñez. Obrigaram-na a caminhar descalça sobre vidros e pedras numa longa via cruz. Espancaram-na, raparam-lhe o cabelo, derramaram tinta vermelha por todo o corpo. A fotografia de uma mulher feita cacos e terrivelmente sozinha nas mãos dos agressores correu o mundo. “Podem-me ter cortado o cabelo, espancar-me, mas as minhas ideias permanecem intactas”, atirou ao sair do hospital.
Nunca mais a deixaram em paz. A 22 de abril desse ano, a Força Especial de Luta contra o Crime prendeu-a junto aos seus cinco filhos. Invadiram a casa onde viviam e acusaram-nos de organizar uma festa com bebidas alcoólicas, violando as medidas sanitárias impostas durante a pandemia. Os testes – de coronavírus e álcool – deram negativo. “É uma perseguição política!”, gritou. “Sofri o pior abuso do governo interino. Tocaram no mais sagrado que uma pessoa tem, a família”.
O mundo dá muitas voltas, mas na Bolívia os giros são acrobáticos. Há uma semana, a mulher feita trapo às mãos dos opositores de Evo Morales reapareceu. Meios internacionais relembraram a sua história pintada a vermelho e anunciaram que a travessia do deserto acabara: Patricia Arce foi eleita senadora pelo MAS. Com a cabeça levantada – nunca a baixou – a ex-autarca de Vinto celebrou na sua conta de Twitter: “A tua luta é a minha luta, é a nossa luta. Apesar da tempestade, tempos melhores virão. Vamos seguir adiante”.
A purga
Durante o último ano, políticos ligados a Evo Morales, como Patricia Arce, transformaram-se em alvos a abater. A ordem foi anunciada em praça pública, ao estilo medieval. Sem pudor, o ministro de governo de Áñez, Arturo Murillo, prometeu “ir à caça” de apoiantes de Evo e deu instruções à Procuradoria para avançar com uma “purga” (palavras do próprio). As acusações aos membros do MAS foram desde terrorismo a sedição. Sobre o próprio ex-presidente pesam incriminações similares. Num relatório altamente crítico, a Human Rights Watch (HRW) detalha: “As acusações de terrorismo contra Morales baseiam-se numa ligação telefónica realizada em novembro de 2019, dias depois dele deixar o cargo. Uma pessoa que alegadamente seria Morales instou nessa ligação um colaborador a mobilizar manifestantes para bloquear estradas de acesso a algumas cidades e assim impedir a entrada de alimentos. A pessoa ao telefone diz: ‘Combate, combate, combate!’ e apela a ‘dar uma dura batalha à ditadura’, em referência ao governo interino da presidente Áñez”. Como reconhece a HRW, a acusação é “desproporcionada” e intui uma clara “perseguição política”.
O futuro destes processos é uma incógnita. Assim como a estabilidade política do país. É certo que as eleições de 18 de outubro foram uma vitória inequívoca de Luis Arce, do MAS. Também é verdade que a oposição reconheceu imediatamente os resultados. E que até a dita cuja OEA, vista como a grande artífice da desestabilização da Bolívia no ano passado, reconheceu que desta vez as eleições foram transparentes.
No entanto, é também sabido que existe uma resistência histórica de sectores da sociedade boliviana ao protagonismo da maioria indígena nestas coisas de política. Em Santa Cruz, região economicamente importante do país, alguns grupos já começaram a acenar com o fantasma de uma suposta manipulação em curso dos resultados. A vitória do MAS é inequívoca, mas a contagem oficial ainda não terminou.
Apesar destas vozes internas, a crítica mais polémica à vitória do MAS não veio de Santa Cruz, mas sim de Espanha. No programa “Estado de Alarme”, no Youtube, o jornalista espanhol de OK Diario, Alejandro Entrambasaguas, soltou a bomba: “O votante médio do MAS tem um nível intelectual nulo. Já não me refiro ao nível cultural, não, não, não! Eles não têm praticamente nível. (…) A maioria da gente que votou em Evo Morales vive no campo, é gente que não sabe o que é um telemóvel, não sabe o que é a internet e mentalmente não tem absolutamente ideia de praticamente nada. São analfabetos literais. Há muita gente que não sabe falar espanhol. Falam aymara, quéchua ou idiomas nativos indígenas. Não têm nenhuma ideia do que é a civilização”.
O vómito de Alejandro Entrambasaguas viralizou-se pela América Latina e provocou um nojo geral. O jornalista supostamente especializado em temas bolivianos acabou por pedir desculpas, dizer que ama o povo da Bolívia, mas que não vai deixar de “denunciar a corrupção do MAS”. Entrabamsaguas está agora a ser investigado pela Procuradoria boliviana por xenofobia, racismo e discriminação.
Os comentários do jornalista indignam, mas são pouco mais que verborreia de neo-Pizarros & Companhia. O problema é que esta é a forma de pensar de muitos, não só Bolívia, mas em toda a região. Indignados, vários grupos indígenas latino-americanos responderam aos ataques de Entrebamsaguas com palavras-luta. Nos últimos dias, inundaram as redes sociais com o poema “Los Nadies”. A voz a todos eles, na pena de Eduardo Galeano:
“Sonham as pulgas em comprar um cão e sonham os ninguéns em deixar de ser pobres, que algum mágico dia chova de repente a boa sorte, que chova a cântaros a boa sorte. Mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Nem numa chuva miudinha cai do céu a boa sorte, por mais que os ninguéns as chamem e mesmo que piquem a mão esquerda, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns; os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, os ignorados, correndo
A lebre, morrendo a vida, fodidos, re-fodidos:
Que não são, apesar de serem.
Que não falam idiomas, mas dialetos.
Que não professam religiões, mas superstições.
Que não fazem arte, mas artesanato.
Que não praticam cultura, mas folclore.
Que não são seres humanos, mas recursos humanos.
Que não têm cara, mas braços.
Que não têm nome, mas número.
Que não figuram na história universal, mas na secção de crime
Da imprensa local
Os ninguéns, que custam menos que a bala que os mata.
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