Os versos de Cardenal


"Deus dorme comigo todos os dias na rede. Todos os dias me levanto de madrugada e rezo uma ou duas horas, medito, pergunto-me porque nos abandonou a nós, os seus filhos na Terra, porque renunciou a ser o nosso Deus, porque permitiu que, sozinhos, fizéssemos mudanças no mundo. Sim, acredito em Deus. Mas deixou-nos sozinhos."


Ernesto Cardenal em conversa com a poetisa mexicana Lina Zerón. Rum “Flor de Caña” no copo; corpo atirado numa rede que balançava lentamente. O nicaraguense de família abastada de Granada, nascido em 1925, foi uma das figuras mais queridas e irrequietas da literatura latino-americana. Homem de Deus, velho guerrilheiro de palavras. Barba branca e densa. Boina preta, imagem de marca. No dia 1 de março, o “ícone latino-americano da rebeldia e do amor”, como lhe chamaram alguns, morreu em Manágua. Tinha 95 anos.

A fé de Ernesto Cardenal era um mistério – essa fé inabalável dos que acreditam mas já nada esperam. O abandono, a luta e a palavra alimentavam-na. O “sacerdote, poeta e revolucionário” (palavras suas) acreditava tanto em Deus como em Marx. “Dois idealistas frustrados”, atirava na conversa íntima com Lina Zerón na sua cabana do arquipélago de Solentiname, no Cocibolca, o Grande Lago da Nicarágua. Este era o lugar mítico de Cardenal. Ali estão agora as suas cinzas.

Foi nestas ilhas que fundou, em 1965, uma comunidade cristã de camponeses e pescadores. Ensinou-lhes a ler e a escrever, ensinou-lhes arte. “Os camponeses são artistas. Há muitos anos, eu ensinava-os a talhar a madeira para fazer aves, tartarugas, muitas outras coisas. Pintavam-nas com cores belas, vendiam-nas em Manágua e isso ajudava-os com as suas despesas. Somos uma comunidade pequena. As pessoas daqui são felizes. Todos trabalham para todos sob o mais puro e autêntico lema do comunismo”.

“Dizia-o com um semblante triste”, relembrava Lina Zerón cinco anos antes da despedida. “Quando morrer, gostava de ressuscitar num jovem de 32 anos e ter a minha vida dessa altura. Eu era muito namoradeiro, mas as raparigas não me ligavam tanto quanto eu queria”.

O poeta reencarnará ao terceiro, centésimo, milésimo dia conforme lhe der na telha, para reviver os versos de “amor e ódio” de “Epigramas” a obra que o reconheceu como poeta. Há quem diga que são os versos que a América Latina mais cita e sabe de cor. Com amor no peito e fogo no corpo, Cardenal ressuscitado:

Ontem à noite sonhei com um coito, um sonho realista, hiper-realista.
me martirizarás com a carne
para que não te queira mais
mas não carnalmente.

João Paulo II no Aeroporto de Manágua, repreende Ernesto Cardenal por fazer parte do governo de esquerda da Nicarágua.

“Minha gatita terna” e o fantasma de Somoza

Ao colo de Ernesto Cardenal, uma gata estremece.

Minha gatita terna,
Minha gatita terna!
Como estremecem
A minha gatita terna
As minhas carícias na sua cara
E no seu pescoço
E os vossos assassinatos
E torturas!


O prazer e o medo. Em meados dos anos 70, o calor húmido de Manágua tentava abafar, sem sucesso, uma revolução em curso. Os guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) corroíam pouco a pouco o poder dos Somoza, a família que há mais de 40 anos dominava a Nicarágua. Anastasio Somoza Debayle, o terceiro e último ditador do clã, afundava o país em corrupção, tortura e repressão. Nos Estados Unidos, Henry Kissinger puxava os fios da marioneta nicaraguense, enquanto a sul do continente instalava os déspotas da “Operação Condor”.

Com tesoura na mão pronta a cortar os fios do títere, a revolução marxista avança na Nicarágua. Setores da Igreja nicaraguense apoiam abertamente os guerrilheiros sandinistas. São tempos da Teologia da Libertação. Com a cruz ao peito, Ernesto Cardenal dá a cara pela FSLN. A oposição ao regime de Somoza não é de agora. Em 1954, ainda antes de ser ordenado sacerdote, participara na chamada “Revolução de Abril”, uma tentativa falhada de golpe de estado contra Anastasio Somoza García, o primeiro ditador da família. “De repente soa uma sirene”:

De repente soa uma sirene

De alarme, longa, longa
O uivado lúgubre da sirene
De incêndio ou da ambulância branca de morte,
Como o grito da Cégua na noite,
Que se aproxima e se aproxima sobre as ruas
E as casas e sobe, sobe e baixa
E cresce, cresce, diminui e se afasta
Crescendo e diminuindo
Não é incêndio nem morte:
É Somoza que passa.

O fim está próximo. Cardenal sabe que o púlpito da Igreja é voz e que os poemas são balas certeiras. Em julho de 1979, a FSLN põe finalmente uma pedra sobre o reinado dos Somoza. Ernesto Cardenal é nomeado Ministro da Cultura (1979 – 1987).

O ativismo político de esquerda do sacerdote não cai bem no Vaticano. Em 1983, o Papa João Paulo II chega a uma Nicarágua conturbada e sob assédio dos “contras”, movimento financiado pelos Estados Unidos para derrubar o governo sandinista. Cardenal espera o seu líder religioso no aeroporto. De joelhos e boina preta na mão olha-o nos olhos com emoção evidente. João Paulo II recusa-lhe a bênção. Com dedo em riste, dispara: “Primeiro o senhor tem de se reconciliar com a Igreja”. Nunca acatou a ordem. Um ano depois, o Papa proibia Cardenal de exercer o sacerdócio. A publicação das obras “Teologia da Libertação” e “Evangelho em Solentiname”, marcadamente esquerdistas, contribuíram para a decisão.

Na comunidade de Solentiname, o sacerdote apócrifo ignorou a lei dos homens e continuou a celebrar a chamada “missa do camponês”. Ficou célebre, a consagração dos batismos: “Que saia o capitalismo e o consumismo desta criança e entre a doutrina marxista”. Em fevereiro do ano passado, 35 anos depois do “exílio eclesiástico” decretado por João Paulo II, o Papa Francisco revogou a proibição.“Salmo 1” e as cinzas

Bem-aventurado o homem que não segue as consignas do Partido
Nem assiste aos seus comícios
nem se senta à mesa com os gangsters
nem com os Generais no Conselho de Guerra.
Bem-aventurado o homem que não espia o seu irmão
nem delata o seu companheiro de colégio
Bem-aventurado o homem que não lê os anúncios comerciais
nem ouve as suas rádios
nem acredita nos seus slogans.
Será como uma árvore plantada junto a uma fonte.


A rutura com “o Partido” teve data: 1994. Nesse ano, Cardenal seguiu a tendência de outros históricos do FSLN e abandonou o movimento liderado por Daniel Ortega. Dez anos depois, em 2004, o livro “A Revolução Perdida” pôs o poeta em rota de colisão frontal e irreversível com o regime nicaraguense. Na obra, o sacerdote acusava as elites políticas do FSLN de enriquecimento ilícito e de trair os princípios da revolução sandinista de 1979. Seguiu-se uma perseguição da Justiça nicaraguense que durou até à sua morte. Prisão domiciliária e contas congeladas foram algumas das consequências para Cardenal. “Estamos numa ditadura e sou perseguido político do casal presidencial”, afirmou a dada altura.

Enquanto procurava reposicionar-se politicamente, o “poeta científico”, como se classificava, ganhava peso nos meios literários de todo o mundo. Em maio de 2005, foi nomeado para o Nobel de Literatura. Em 2009, recebeu o Prémio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda, um velho amigo dos tempos em que Cardenal privava com o presidente chileno Salvador Allende. Em 2012, venceu o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana.

Em 2018, o reconhecimento veio do Uruguai, com o prémio Mario Benedetti. O galardão chegou num ano conturbado para a Nicarágua. Em abril, o que começara como protestos contra reformas no sistema de segurança social, explodiu numa violenta crise política que ainda hoje perdura. O saldo é macabro e está em aberto: centenas de mortos, desaparecidos, torturados, milhares de exilados – sobretudo estudantes. A exigência é clara: Daniel Ortega tem de abandonar o poder.

A ira contra o histórico da revolução sandinista soltou-se sobretudo depois da morte de um jovem de 15 anos nas ruas de Manágua, a poucos dias do início de protestos de abril. Ernesto Cardenal rapidamente condenou a repressão. E aproveitou o prémio Mario Benedetti para dar voz ao movimento. Alegou questões de saúde para não viajar até Montevideo e enviou, em seu lugar, “uma senhora da revolução”, Lizeth Dávila, “mãe do jovem quase criança, Álvaro Conrado, que foi assassinado por um atirador furtivo a mando do regime atual [da Nicarágua], um regime criminoso, assassino”, disse.

A voz não se calou e quarenta anos depois, os velhos poemas que o sacerdote escreveu na luta contra a ditadura de Somoza recobram vida nas páginas dos jornais. “São poemas que parecem escritos hoje”, escreveu o jornalista Franklin Villavicencio. Em tempos de bloqueios espontâneos de civis nas ruas da Nicarágua para deter a violência dos paramilitares, “A Barricada” ressuscita.

Foi uma tarefa de todos
Os que se foram sem beijar a sua mamã
para que não soubesse onde iam.
O que beijou pela última vez a sua namorada.
E a que deixou os braços dele para abraçar um Fal.
O que beijou a avozinha que fazia as vezes de mãe
e disse que voltava rápido, agarrou o boné e não voltou.
Os que estiveram anos na montanha.
Anos na clandestinidade, nas cidades mais perigosas que a montanha.
Os que seriam correios nos trilhos sombrios do norte,
ou choferes de Manágua, choferes de guerrilheiros a cada anoitecer.
Os que compravam armas no estrangeiro lidando com gangsters.
Os que montavam comícios no estrangeiro com bandeiras e gritos
ou pisavam a carpete da sala de audiências de um presidente.
Os que assaltavam quartéis ao grito de Pátria Livre ou Morrer.
O rapaz vigilante na esquina da rua libertada
com um pano rubro-negro no rosto.
As crianças carregando paralelos,
arrancando paralelos das ruas
- que foram um negócio de Somoza –
e carregando paralelos e paralelos
para as barricadas do povo.
As que levavam café aos moços que estavam nas barricadas.
Os que fizeram as tarefas importantes,
e os que faziam as menos importantes:
Isto foi uma tarefa de todos.
A verdade é que todos pusemos paralelos na grande barricada.
Foi uma tarefa de todos. Foi o povo unido.
E fizemo-lo.”


A “nova revolução”, como lhe chamou Cardenal, está em curso, mas o velho sacerdote já não verá o desfecho. A morte apanhou-o prevenido. Estava cansado, dizem os amigos. Da luta e do ódio que o perseguiu além-morte. A 1 de março, ao mesmo tempo que o governo de Daniel Ortega decretava três dias de luto nacional pela morte do poeta, a polícia de choque cercava a funerária onde se reuniam amigos e familiares de Cardenal. Dias depois, ao estilo de um regime em decadência, durante a missa de corpo presente uma centena de apoiantes de Ortega invadiu a Catedral de Manágua. Gritaram “traidor” ao cadáver frio e inerte. Insultaram os presentes e agrediram cinco jornalistas. Com medo de que as turbas profanassem o corpo, os admiradores do poeta tiraram o caixão às pressas por uma porta lateral do templo.

A confusão instalou-se. Estalou o copo na mão de Cardenal, verteu-se o rum no cetim do féretro aos solavancos na fuga em ombros pela catedral, antes de ser cinza. E ouviu-se então, num exercício de imaginação, o último grito contrapoder do rebelde num verso-único:

Tu não mereces sequer um epigrama.

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