Os versos de Cardenal
A fé de Ernesto Cardenal era um mistério – essa fé inabalável dos que acreditam mas já nada esperam. O abandono, a luta e a palavra alimentavam-na. O “sacerdote, poeta e revolucionário” (palavras suas) acreditava tanto em Deus como em Marx. “Dois idealistas frustrados”, atirava na conversa íntima com Lina Zerón na sua cabana do arquipélago de Solentiname, no Cocibolca, o Grande Lago da Nicarágua. Este era o lugar mítico de Cardenal. Ali estão agora as suas cinzas.
Foi nestas ilhas que fundou, em 1965, uma comunidade cristã de camponeses e pescadores. Ensinou-lhes a ler e a escrever, ensinou-lhes arte. “Os camponeses são artistas. Há muitos anos, eu ensinava-os a talhar a madeira para fazer aves, tartarugas, muitas outras coisas. Pintavam-nas com cores belas, vendiam-nas em Manágua e isso ajudava-os com as suas despesas. Somos uma comunidade pequena. As pessoas daqui são felizes. Todos trabalham para todos sob o mais puro e autêntico lema do comunismo”.
“Dizia-o com um semblante triste”, relembrava Lina Zerón cinco anos antes da despedida. “Quando morrer, gostava de ressuscitar num jovem de 32 anos e ter a minha vida dessa altura. Eu era muito namoradeiro, mas as raparigas não me ligavam tanto quanto eu queria”.
O poeta reencarnará ao terceiro, centésimo, milésimo dia conforme lhe der na telha, para reviver os versos de “amor e ódio” de “Epigramas” a obra que o reconheceu como poeta. Há quem diga que são os versos que a América Latina mais cita e sabe de cor. Com amor no peito e fogo no corpo, Cardenal ressuscitado:
me martirizarás com a carne
para que não te queira mais
mas não carnalmente.
“Minha gatita terna” e o fantasma de Somoza
Ao colo de Ernesto Cardenal, uma gata estremece.
Minha gatita terna,
Minha gatita terna!
Como estremecem
A minha gatita terna
As minhas carícias na sua cara
E no seu pescoço
E os vossos assassinatos
E torturas!
O prazer e o medo. Em meados dos anos 70, o calor húmido de Manágua tentava abafar, sem sucesso, uma revolução em curso. Os guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) corroíam pouco a pouco o poder dos Somoza, a família que há mais de 40 anos dominava a Nicarágua. Anastasio Somoza Debayle, o terceiro e último ditador do clã, afundava o país em corrupção, tortura e repressão. Nos Estados Unidos, Henry Kissinger puxava os fios da marioneta nicaraguense, enquanto a sul do continente instalava os déspotas da “Operação Condor”.
Com tesoura na mão pronta a cortar os fios do títere, a revolução marxista avança na Nicarágua. Setores da Igreja nicaraguense apoiam abertamente os guerrilheiros sandinistas. São tempos da Teologia da Libertação. Com a cruz ao peito, Ernesto Cardenal dá a cara pela FSLN. A oposição ao regime de Somoza não é de agora. Em 1954, ainda antes de ser ordenado sacerdote, participara na chamada “Revolução de Abril”, uma tentativa falhada de golpe de estado contra Anastasio Somoza García, o primeiro ditador da família. “De repente soa uma sirene”:
De repente soa uma sirene
De alarme, longa, longa
O uivado lúgubre da sirene
De incêndio ou da ambulância branca de morte,
Como o grito da Cégua na noite,
Que se aproxima e se aproxima sobre as ruas
E as casas e sobe, sobe e baixa
E cresce, cresce, diminui e se afasta
Crescendo e diminuindo
Não é incêndio nem morte:
É Somoza que passa.
O fim está próximo. Cardenal sabe que o púlpito da Igreja é voz e que os poemas são balas certeiras. Em julho de 1979, a FSLN põe finalmente uma pedra sobre o reinado dos Somoza. Ernesto Cardenal é nomeado Ministro da Cultura (1979 – 1987).
Na comunidade de Solentiname, o sacerdote apócrifo ignorou a lei dos homens e continuou a celebrar a chamada “missa do camponês”. Ficou célebre, a consagração dos batismos: “Que saia o capitalismo e o consumismo desta criança e entre a doutrina marxista”. Em fevereiro do ano passado, 35 anos depois do “exílio eclesiástico” decretado por João Paulo II, o Papa Francisco revogou a proibição.“Salmo 1” e as cinzas
Nem assiste aos seus comícios
nem se senta à mesa com os gangsters
nem com os Generais no Conselho de Guerra.
Bem-aventurado o homem que não espia o seu irmão
nem delata o seu companheiro de colégio
Bem-aventurado o homem que não lê os anúncios comerciais
nem ouve as suas rádios
nem acredita nos seus slogans.
Será como uma árvore plantada junto a uma fonte.
A rutura com “o Partido” teve data: 1994. Nesse ano, Cardenal seguiu a tendência de outros históricos do FSLN e abandonou o movimento liderado por Daniel Ortega. Dez anos depois, em 2004, o livro “A Revolução Perdida” pôs o poeta em rota de colisão frontal e irreversível com o regime nicaraguense. Na obra, o sacerdote acusava as elites políticas do FSLN de enriquecimento ilícito e de trair os princípios da revolução sandinista de 1979. Seguiu-se uma perseguição da Justiça nicaraguense que durou até à sua morte. Prisão domiciliária e contas congeladas foram algumas das consequências para Cardenal. “Estamos numa ditadura e sou perseguido político do casal presidencial”, afirmou a dada altura.
Enquanto procurava reposicionar-se politicamente, o “poeta científico”, como se classificava, ganhava peso nos meios literários de todo o mundo. Em maio de 2005, foi nomeado para o Nobel de Literatura. Em 2009, recebeu o Prémio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda, um velho amigo dos tempos em que Cardenal privava com o presidente chileno Salvador Allende. Em 2012, venceu o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana.
Em 2018, o reconhecimento veio do Uruguai, com o prémio Mario Benedetti. O galardão chegou num ano conturbado para a Nicarágua. Em abril, o que começara como protestos contra reformas no sistema de segurança social, explodiu numa violenta crise política que ainda hoje perdura. O saldo é macabro e está em aberto: centenas de mortos, desaparecidos, torturados, milhares de exilados – sobretudo estudantes. A exigência é clara: Daniel Ortega tem de abandonar o poder.
A ira contra o histórico da revolução sandinista soltou-se sobretudo depois da morte de um jovem de 15 anos nas ruas de Manágua, a poucos dias do início de protestos de abril. Ernesto Cardenal rapidamente condenou a repressão. E aproveitou o prémio Mario Benedetti para dar voz ao movimento. Alegou questões de saúde para não viajar até Montevideo e enviou, em seu lugar, “uma senhora da revolução”, Lizeth Dávila, “mãe do jovem quase criança, Álvaro Conrado, que foi assassinado por um atirador furtivo a mando do regime atual [da Nicarágua], um regime criminoso, assassino”, disse.
A voz não se calou e quarenta anos depois, os velhos poemas que o sacerdote escreveu na luta contra a ditadura de Somoza recobram vida nas páginas dos jornais. “São poemas que parecem escritos hoje”, escreveu o jornalista Franklin Villavicencio. Em tempos de bloqueios espontâneos de civis nas ruas da Nicarágua para deter a violência dos paramilitares, “A Barricada” ressuscita.
Os que se foram sem beijar a sua mamã
para que não soubesse onde iam.
O que beijou pela última vez a sua namorada.
E a que deixou os braços dele para abraçar um Fal.
O que beijou a avozinha que fazia as vezes de mãe
e disse que voltava rápido, agarrou o boné e não voltou.
Os que estiveram anos na montanha.
Anos na clandestinidade, nas cidades mais perigosas que a montanha.
Os que seriam correios nos trilhos sombrios do norte,
ou choferes de Manágua, choferes de guerrilheiros a cada anoitecer.
Os que compravam armas no estrangeiro lidando com gangsters.
Os que montavam comícios no estrangeiro com bandeiras e gritos
ou pisavam a carpete da sala de audiências de um presidente.
Os que assaltavam quartéis ao grito de Pátria Livre ou Morrer.
O rapaz vigilante na esquina da rua libertada
com um pano rubro-negro no rosto.
As crianças carregando paralelos,
arrancando paralelos das ruas
- que foram um negócio de Somoza –
e carregando paralelos e paralelos
para as barricadas do povo.
As que levavam café aos moços que estavam nas barricadas.
Os que fizeram as tarefas importantes,
e os que faziam as menos importantes:
Isto foi uma tarefa de todos.
A verdade é que todos pusemos paralelos na grande barricada.
Foi uma tarefa de todos. Foi o povo unido.
E fizemo-lo.”
A “nova revolução”, como lhe chamou Cardenal, está em curso, mas o velho sacerdote já não verá o desfecho. A morte apanhou-o prevenido. Estava cansado, dizem os amigos. Da luta e do ódio que o perseguiu além-morte. A 1 de março, ao mesmo tempo que o governo de Daniel Ortega decretava três dias de luto nacional pela morte do poeta, a polícia de choque cercava a funerária onde se reuniam amigos e familiares de Cardenal. Dias depois, ao estilo de um regime em decadência, durante a missa de corpo presente uma centena de apoiantes de Ortega invadiu a Catedral de Manágua. Gritaram “traidor” ao cadáver frio e inerte. Insultaram os presentes e agrediram cinco jornalistas. Com medo de que as turbas profanassem o corpo, os admiradores do poeta tiraram o caixão às pressas por uma porta lateral do templo.
A confusão instalou-se. Estalou o copo na mão de Cardenal, verteu-se o rum no cetim do féretro aos solavancos na fuga em ombros pela catedral, antes de ser cinza. E ouviu-se então, num exercício de imaginação, o último grito contrapoder do rebelde num verso-único:
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