7 da manhã em Luanda: Mais um dia de vida


Quando sonhava mudar o mundo, Kapuscinsky era o meu modelo absoluto. A seguir, a copiar, desse por onde desse eu seria assim um dia. Todo ele era luz. Um firme lutador pela liberdade, a voz dos sem voz. Na minha cabeça, a cicatriz de uma tatuagem-chavão ardia a cada segundo: “A palavra é uma arma”.

Foi por ele, também, que decidi ser jornalista. Não um qualquer. Desses que dão a vida pelo bem comum. Um idealista sem carteira profissional, mas com o nome gravado nas folhas de um jornal libertário com cheiro de tinta fresca.

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Aos 10 anos habituei-me a acordar às 7 da manhã, meia hora antes do necessário. Não para despertar  pouco a pouco, mas porque era às 7 da manhã que as notícias de Angola abriam os noticiários da rádio. Era Setembro de 1992. A segunda volta das eleições estava já descartada. A guerra era inevitável, mas acreditava ainda num milagre. Que nunca chegou. Um dia, o locutor esbofeteou-me com a notícia de que Angola explodia de novo. Lembro-me do escuro do meu quarto. E de que nesse dia fazia frio, muito, na cidade portuguesa diminuta onde cresci.

Desde então, acordo todos os dias à hora certa. Com olhos feridos pela luz, antes de qualquer coisa abro as páginas de jornais. É um ato de fé. A minha oração matinal faz-me crer que durante a noite o mundo mudou para melhor. É um rosário interminável.

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Acabo de ver o filme animado “Angola 75: Mais um dia de vida”. A história de Kapuscinski nesses dias que precederam a Dipanda. A Luanda colonial a desmoronar-se, o porto com barcos que chegavam do Lobito com os meus avós, tios, com a minha família inteira encaixotada.

Não importa o que ache ou deixe de achar do filme – bom e não tão bom, como tudo -, esse não é o ponto. O inesperado é que foi um murro no estômago. Esbarrei-me de novo nessa sensação-parede das 7 da manhã. Lembrei-me do momento em que decidi ser jornalista e um justiceiro implacável. Não me contive.

Muita coisa mudou desde então. Angola está a uns inacreditáveis oito, quase nove anos de distância. Estou em terra longe. Um lugar com outras makas, outras dores, impensáveis dores. O jornalismo que durante anos a fio foi a minha vida (não havia sequer outra possibilidade imaginária) é agora algo que sai a ferros, porque mudar o mundo é anti-corporativo. Escrevo o que posso, com bolsos rotos, seguindo uma intuição meia tola que me está a enterrar os últimos centavos e que, provavelmente, me levará a mais um escritório requintado onde, com bastante diligência, vou carimbar papéis, fechar negócios, entrar às 9, sair às 6 e ruminar a cada momento um "que merda faço aqui." Dispo lentamente a alma para me queixar depois do frio.

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Há uma imagem que nunca me saiu da cabeça. Foi em 1993, quando a Fátima Torres (se não estou enganado) fez uma reportagem sobre a marcha do Huambo. Milhares de pessoas fugiam a pé da capital do planalto para Benguela. Num dado momento, um homem aparece a caminhar com a cabeça aberta, o cérebro à vista a pender como um pedaço de tripa.

Não sei se foi tal e qual, era puto, mas é assim que me lembro desse momento, sentado à mesa da cozinha com os meus pais para ver a grande reportagem com notícias de Angola. Demoraram quase 10 anos até ao dia em que, não sei se às 7 da manhã, um locutor da rádio por fim anunciou a paz. 4 de Abril de 2002. Menos de dois anos depois, sobrevoei a baía pela primeira vez. Nunca mais a deixei.

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