Sonhos por Sexo - prostituição de menores na ilha do Fogo

No Fogo, o regresso dos emigrantes durante as férias, é muito mais que um voltar à terra natal. É uma oportunidade para instaurar uma espécie de prostituição tolerada socialmente, onde na maior parte dos casos as envolvidas são menores de idade e de baixa condição social. Uma troca directa de sexo por promessas de vida melhor nos EUA que muitas vezes se transformam para as menores em autênticos pesadelo e frustração. Todos sabem o que acontece, mas  poucos se importam.


“As minhas amigas começaram com treze ou catorze anos. Eu que vivi esta história de pesadelo só aos 18 anos. Ele era um emigrante muito mais velho que eu. Ele estava de férias cá em Patim. Insistiu várias vezes para estar comigo, e eu acabei por ceder, não porque gostava dele, mas porque naquela altura só pensava que aquela podia ser uma forma de ajudar a minha mãe, com quem vivia sozinha e com muitas dificuldades. Tivemos uma relação muito complicada e que acabou quando ele voltou para a América, sem me ajudar de nenhuma forma, como me tinha prometido. Fiquei sozinha, com um enorme sentimento de arrependimento”.

Estas palavras de Sãozinha, uma jovem de Patim que manteve uma relação de interesse com um emigrante, são um exemplo de uma realidade que invade, por alturas do Verão, a ilha do Fogo. Uma roda-viva de promiscuidade e de negócio, em que, a troco de alguns trocos e de promessas inconsequentes de uma vida melhor, emigrantes e raparigas menores de idade, e muitas vezes em violação da lei, envolvem-se em relações onde tudo vale, menos o amor. A esta relação, muitos preferem não encaixar no conceito de “prostituição”. Preferem chamar-lhe “instinto de sobrevivência”.

Sãozinha. Foto de 2005.

Na base de toda esta realidade estão, segundo várias fontes, as grandes dificuldades económicas vividas no Fogo. Um factor aproveitado não só por emigrantes mas também por locais, para fazerem investidas junto das camadas mais vulneráveis que baixam as defesas quando em contacto com promessas de uma vida melhor. Como diz Carlos Silva, gestor do Programa da Luta contra a Pobreza no Fogo, “estas raparigas, muitas vezes vítimas de exclusão social devido à sua pobreza, ao encontrarem alguém que se interessa por elas, lhes oferece roupas, dinheiro, viagens e, acima de tudo, uma vida de sonho na América, não pensam duas vezes”.

Sãozinha confirma: “imaginem que com treze ou catorze anos vou a S. Filipe e vejo uma menina bonita, bem vestida, rodeada de rapazes e amigos. É lógico que eu, que não tenho sapatos, que tenho a minha roupa rasgada e por causa disso sou posta de parte pelas outras crianças vou ficar com vontade de ser como elas. Sei do que estou a falar porque eu já passei por essa situação. Então, se de repente aparece alguém que lhes promete esse mundo de sonho, em troca do corpo…”. A frase incompleta deixa adivinhar o seu seguimento.


 Promessa de compra e venda

Para o padre italiano Orfeu Marchesan, pároco de Mosteiros que toma o pulso à vila há já quinze anos, “nestas coisas não há inocentes”. “Se por um lado o emigrante chega cá com a necessidade de demonstrar que foi bem-sucedido na América e com a arrogância que pode fazer o que muito bem quiser, por outro, ele só assume essa postura porque há quem se sujeite a ela”, diz. Para o sacerdote, o que se passa é, no fundo, uma “prostituição legalizada” à qual ninguém liga. Porque, afirma, “estas relações não tem nada a ver com amor e nem sequer com prazer, porque elas só fazem sexo com os emigrantes se houver ‘cacau’ pelo meio”. É, então, para o mesmo, “uma questão de pobreza e mentalidade, sim senhor, mas também de preparação cultural e, acima de tudo, de desestruturação da família”.

De facto, segundo algumas fontes, as famílias das menores são, segundo vários entrevistados, coniventes com a exploração sexual das suas filhas, incentivado-a, muitas vezes. Como testemunha o gestor da Luta Contra a Pobreza, “é do conhecimento geral que quando as famílias se opõem às pretensões dos emigrantes que querem estar com uma determinada rapariga menor de idade, estes calam-lhes a boca com dinheiro”.


Por seu lado, Adelaide Silva, delegada do Procurador nos Mosteiros há já quase sete anos, conta que “muitos homens que se envolvem com as menores, como sabem que estão a cometer um crime, financiam as famílias com dinheiro ou outros bens, o que lhes garante a colaboração dos familiares, e dá-lhes a certeza de que nunca irão ser denunciados junto das autoridades”. No entanto, o cenário muda muitas vezes quando “o homem deixa de ter necessidade de esconder o que quer que seja”, diz. “Frequentemente esta sustentação da família acaba quando a rapariga atinge os dezasseis anos, a idade legal para ela poder manter relações sexuais com adultos sem isso constituir crime. É nesse contexto que surgem as denúncias, como forma das famílias retaliarem contra o fim desse rendimento extra, digamos”. Porém, acrescenta, “muitas vezes os casos não vão para a frente porque as ofendidas, que já atingiram idade para se representarem, não têm interesse em manter a queixa”.

Jogo sem regras

Normalmente o jogo começa nas ruas ou em locais “estratégicos”, como conta “Rita”. Esta jovem de S. Filipe, afirma que “mal chegam à cidade, os emigrantes começam a desfilar em carros topo de gama em frente ao liceu, para chamar a atenção das raparigas”. Segundo a mesma, este contacto é normalmente acompanhado por “brigas e guerras entre as estudantes”, e acontece normalmente nas horas dos intervalos. Da escola, muitas tomam uma “boleia” para irem “dar uma volta”.

Uma volta que poderá terminar em determinadas pensões que, segundo Carlos Silva, gestor da Luta Contra a Pobreza, “fecham os olhos ao que se passa nos seus quartos entre menores e adultos”. No mesmo registo, um outro entrevistado do A Semana, afirma que “há inclusivamente pessoas que quebram as regras dessas residenciais, emprestando o seu quarto a um amigo, levando mais pessoas para lá do que as que são permitidas por quarto, tudo com a complacência dos donos”.


 Interrogados directamente pelo jornal A Semana, os proprietários de três das pensões apontadas como “cúmplices” negaram mais ou menos convictamente que os seus quartos fossem cenários de abuso sexual de menores. Enquanto José Barros, dono da pensão “Verdiana”, admite que “há situações que podem escapar ao controlo”, como “alguém dar uma gorjeta ao porteiro para entrar na pensão para fazer o que quiser lá dentro”, Rita Pires, dona da “Pensão Fátima”, garante que “para essas coisas só entram aqui adultos, nunca menores”, uma vez que controla os bilhetes de identidade, “de todos os clientes”, garante. No mesmo tom, José Avelino, dono da pensão Las Vegas admite que “nem sempre é fácil controlar todas as situações”, mas que com o seu conhecimento “nunca meninas ou mulheres adultas entrarão nesta pensão para se prostituírem”.

Várias fontes apontam também os bares e locais de diversão nocturna como sítios onde estas situações são fomentadas. Uma alegação confirmada pela própria polícia. Segundo o recém-empossado comandante Regional da Polícia da Ordem Pública do Fogo, José Ribeiro, nestes locais o ambiente é realmente propício a uma “prostituição não clássica”. E afirma: “apenas posso falar como cidadão, uma vez que ocupo este cargo há pouco tempo, mas admito que possa haver uma certa permissividade da polícia nesta questão, uma vez que, pelo que se vê, há menores que, de facto, frequentam lugares proibidos”.


Confrontado pelo A Semana com as declarações do seu sucessor no cargo de comandante regional da POP no Fogo, Tito Cardoso apelida-as de “infundadas”. O agora comandante regional de S. Vicente, que desempenhou a mesma função na ilha do vulcão nos cinco anos anteriores, diz que “há sim, controlo efectivo e orientações operativas para este tipo de assuntos, principalmente durante os fins-de-semana. Basta ver o plano de actividades para o ano em curso que eu elaborei, e que deixei ao actual comandante, José Ribeiro,  para ver que não há qualquer negligência nesta matéria”.

Porém, como admite, há situações que se verificam em que a polícia é mais “flexível”, como é o caso de “raparigas menores que vão a uma discoteca em companhia de homens mais velho com quem vivem maritalmente”. No entanto, o ex-comandante regional da POP no Fogo diz que a “permanência de menores de dezasseis anos nesses ambientes não é expressiva”. Qualquer especulação em contrário é, para Tito Cardoso, nada mais que “uma dramatização excessiva da situação”.

Pornografia e passa-palavra

Ao mesmo tempo que investem em conquistas sexuais, alguns emigrantes arranjam outras formas de retirar prazer das menores. A gravação de filmes pornográficos amadores, que são divulgados junto de amigos, é uma delas.

Casa que uma fonte assinalou como sendo lugar de gravação de filmes pornográficos com menores. Foto de 2005.
Segundo “Ana”, uma jovem de S. Filipe, muitas vezes as raparigas perdem o controlo da situação”. Desta forma, esta fonte conhece raparigas que “sem saberem foram filmadas enquanto tinham relações sexuais com os emigrantes, que mais tarde mostraram as gravações a várias pessoas, como troféu”. Numa sociedade pequena como o Fogo a informação logo circulou como conta “Ana”: “pelo menos uma dessas raparigas que conheço ainda está traumatizada e com vergonha de encarar de frente as pessoas”.

Na mesma senda, ainda com a pele visivelmente arrepiada, Maria Amélia, dona de um bar no centro de S. Filipe, conta como no dia anterior a esta entrevista, “um desses emigrantes entrou com uma máquina de filmar aqui no bar e começou a mostrar a toda a gente as façanhas da noite anterior com algumas meninas, dentro do seu jipe”.

Padre Orfeu Marchesa. Foto de 2005.

No entanto, na mala os emigrantes levam mais que as filmagens das relações sexuais com as adolescentes – levam nomes. Segundo Sãozinha, tudo indica que existam verdadeiras listas com nomes de raparigas do Fogo consideradas “disponíveis” a circular nos EUA. Estes nomes viajam além fronteiras até àquele país, e são transmitidas de forma informal entre os emigrantes em trânsito de e para Cabo Verde.

“Uma vez soube, por acaso, que o meu nome andava a ser divulgado nos EUA como sendo o de uma rapariga fácil. É que estes emigrantes quando lá chegam, contam aos amigos como passaram sabi em Cabo Verde com esta ou aquela rapariga, o que ela lhes fez ou deixou de fazer, e aconselham-nas aos amigos”, conta.

Algo, para mudar

Partindo do princípio que todo este problema é, antes de mais, “uma questão de mentalidade” enraizada na população, e de pobreza, os vários agentes presentes no terreno preparam acções que possam minimizar o problema.


Embora reconheça que não existe um programa para combater directamente esta questão específica, Carlos Silva, gestor da Luta Contra a Pobreza, afirma que, “ao atacar as bases do problema, como o desemprego e a pobreza, conseguiremos minimizar esta questão” que, segundo o mesmo, “afecta principalmente as zonas rurais, onde a pobreza incide mais”. Mesmo assim, está a ser feito actualmente, segundo o mesmo, um levantamento de todas as famílias que obrigam as filhas menores a prostituírem-se para ganharem algum dinheiro.

No mesmo sentido, em conjunto com a Organização de Mulheres de Cabo Verde, a LCP implementará no terreno a partir deste mês, até ao final do ano, um programa de sensibilização sobre o papel social da mulher, de prevenção da SIDA e do consumo de drogas e ainda um projecto de formação profissional direccionado às jovens com formação que concluíram o secundário mas que não encontram oportunidades de emprego. A par destas iniciativas, a LCP pretende ainda criar um sistema de micro-créditos que “impulsione a iniciativa individual dos desempregados”.


O combate a este fenómeno social poderá passar também pelo trabalho conjunto entre a LCP e as associações comunitárias. Segundo Vitorino Cardoso, presidente da Associação ABC, de Patim, “estas associações, porque estão mais perto do povo são importantes para evitar que estas coisas aconteçam”. “Palestras sobre consciencialização social, doenças sexualmente transmissíveis e, acima de tudo, ocupação dos tempos livres” é o caminho que pelo menos a associação de Vitorino Cardoso trilhará nos próximos tempos para “evitar um mal que está à vista de todos”, diz.

No entanto, o maior reforço institucional no que toca a esta matéria, terá o Instituto Cabo-Verdiano de Menores como protagonista. Como avançou ao A Semana a presidente do ICM, Marilena Baessa, “estamos ainda a acertar os últimos pormenores com a Câmara Municipal de S. Filipe, mas entre este e o próximo mês abrirá naquela cidade uma delegação do instituto”.


No que toca à relação entre emigrantes e menores, Marilena Baessa afirma que o ICM “tem consciência do que se passa” e que este é, “em conjunto com a abertura da ilha ao turismo, um dos pontos que nos tem provocado maior apreensão, no que toca à situação dos menores da ilha”.

A intervenção do ICM nesta área passará, segundo a presidente, pela “criação de actividades que lhes ocupem os tempos livres, mas acima de tudo, pela sensibilização das crianças e das famílias, de forma a aumentar a sua auto-estima”. Pretende também trabalhar para que o “Fogo deixe de ser passivo relativamente ao que se passa, porque a mudança faz-se com a reacção”.

Para Marilena Baessa, “embora tudo esteja relacionado, mais que uma questão de pobreza, esta é uma questão de ilusão, porque, como se costuma dizer, naquela ilha as pessoas têm os pés no Fogo e a cabeça na América”.


Enquadramento jurídico

Como assegura Adelaide Silva, delegada do Procurador-Geral da República em Mosteiros, “pela procuradoria de Mosteiros não têm passado queixas relativas a abuso sexual de menores por emigrantes”. Aparecem sim,  “muitos casos relativos a emigrantes que engravidaram mulheres e que partem para a América sem garantir a paternidade dos seus filhos”. Segundo Adelaide Silva, “em cima da mesa tenho uma data de processos de paternidade que estão pendentes, porque ninguém sabe do paradeiro ou até do nome completo do pai”.


Como explica,  as relações sexuais entre jovens até aos 16 anos e adultos é à luz do nova lei penal, um crime sexual”. No entanto há que diferenciar duas situações: “os crimes sexuais em que a vítima tem até catorze anos e mantém relações com um maior de idade são considerados crimes públicos, ou seja, não necessita de queixa, porque basta haver um mínimo indício para o Ministério Público poder iniciar as investigações; por outro lado, os casos que envolvem raparigas entre os 14 e 16 anos já constituem crime semi-público, o que significa que para o processo ser agilizado, a vítima tem que apresentar queixa no tribunal, e manter-se firme na sua intenção de prosseguir com o processo contra o agressor, até à hora do julgamento”.

Para a delegada “esta diferenciação é a medida mais adequada tendo em conta a realidade social do Fogo”, porque “de certa forma protege de certa forma as jovens, não as expondo muito”. No entanto, admite que, ao determinadas situações estarem pendentes de apresentação de queixa, “muitos casos possam estar encobertas e passar impunes”, única e simplesmente porque “o dinheiro compra tudo”.

Reportagem publicada no jornal A Semana (Cabo Verde), Julho de 2005

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