Ilha de Luanda, ilha crioula
A saudade amplia o mito. A música relembra e absolve a
distância. As guitarras e violinos trazem para as terras austrais o som e a
alma das terras crioulas. Na Chicala, recanto da ilha de Luanda, Cabo Verde
renasce todas as noites de fim de semana na casa sempre aberta do Ti Jorge,
badio da Tchada de Santo António, emigrante de “há muitos anos” em terra
angolana.
“Não conta a vida, mas o momento”, ouve-se de vez em quando numa morna que não identifico. É neste
momento que a ilha de Luanda, braço de areia que abraça a baía da cidade de
todos os contrastes, se torna crioula. O som não engana e chama a si o buliço.
Dentro do bar do velho crioulo, alguns cantam, outros olham
para o nada, muitos levantam-se em baile improvisado, todos bebem cerveja, na
ausência de grogue e ponche. Lá fora, dança-se, preto com preto, preto com
branco, crioulo com preto, crioulo com branco, azáfama de corpos pouco
interessados em concentrações de melanina.
Porque aqui e todos os habituais da casa não
se cansam de repetir: “este não é um lugar de cabo-verdianos, é uma casa do
mundo onde toda a gente, angolanos, crioulos, portugueses e todos os mais tem lugar.”
“É como a ONU”, arriscam, até. E é assim que, mais uma vez, Cabo Verde se cumpre.
Repete-se esse destino de ser, onde quer que seja, um encontro de todos,
miscelânea natural de experiências, origens e vidas, de milho com feijão, peixe
com carne, mandioca com chouriço em cachupada que, na casa do Ti Jorge, ganha o
ardor especial do jindungo e do caombo angolanos. Uma mistura informal e
descontraída pontilhada a palavras e sons crioulos que valeu aos seus
promotores uma condecoração do Estado de Cabo Verde, por alturas das
comemorações dos trinta anos da independência crioula.
Neste ambiente, a música torna-se o elemento que todos une neste
terraço coberto por um telhado verde translúcido. Talvez porque seja autêntica,
sem pretensões a nada a não ser a de ensaiar voos rasantes às imagens e
memórias de Cabo Verde. Em piruetas acrobáticas tocam as guitarras de Ti Jorge,
de Varela e do vocalista Maiuka (também ele condecorado por Pedro Pires), o
violino de Nhori, o órgão e o cavaquinho de Nené e a caixa de ritmo, sujeita à
electricidade intermitente da capital. Cada um na sua onda, para onde quer que
a música os leve.
A alguns, leva-os para o outro lado desta estrada que atravessa
a Chicala e que se dilui num estradão de areia poucos metros depois do bar. Lá,
a vibração das potentes colunas de Ti Jorge toma de assalto as tendas dos
axiluandas (naturais da ilha de Luanda). Com a suavidade da morna ou o compasso
apressado da coladeira, tempera o peixe que assa na braseiro, dá ritmo às
conversas dos que, sentados nas cadeiras brancas de plástico dispostas na linha
da praia, se empenham numa dança frenética de cervejas enquanto ao longe, as luzes
de pesqueiros de muitas bandeiras e de gigantes sondas petrolíferas rasgam o
Atlântico negro, à procura de riquezas na escura e prolongada noite angolana.
Crónica publicada na revista de A Semana (Cabo Verde) em 2009
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