Crioulos em Luanda, o mito do El Dorado

São jovens quadros cabo-verdianos em Luanda. Vieram para trabalhar. Alguns ficaram por cá e constituíram família. Encontram em Angola um espaço privilegiado para crescer profissionalmente e transmitir conhecimento. Querem ganhar dinheiro, mas alertam: Angola não é o El Dorado que se pinta.


“Budjurra” a alta velocidade. Sol escaldante, perfeito domingo azul e luminoso, véspera do feriado em Angola. Nos estreitos braços de mar que envolvem os bancos de areia da baía do Mussulo (longa península-ilha, paraíso de fim-de-semana dos luandenses), o pequeno barco de recreio com nome crioulo desliza aos comandos de Carlos Soule “Cau”. Marinheiro mindelense de fim-de-semana, proa apontada a uma ilhota artificial, deserta, árida, no meio da baía. Território cabo-verdiano por uma manhã, onde se fala crioulo de São Vicente e Santo Antão.

Neste Cabo Verde em miniatura as cervejas correm soltas. Da caixa térmica, saltam para as mãos dos cinco amigos, jovens quadros cabo-verdianos em Luanda (fontes não oficiais dizem que, no total, são mais de uma centena), que as bebem mergulhados até ao peito no mar morno desta baía interior. Rodam abarás embrulhados em folhas de bananeira, oferta de um grupo de brasileiros também ali mergulhados, colegas de trabalho de Neusa, esposa de Cau, “angolana mais cabo-verdiana do país”, como lhe chamam os jovens crioulos, na brincadeira. Uma brisa quente brinca por ali. Cheira a maresia.


Do outro lado da ilha, a vista alcança terra firme. São os morros acastanhados do Futungo, antiga zona presidencial, do Benfica e da enorme Luanda Sul, a nova coqueluche da capital angolana. Zona nobre dos condomínios privados e onde nasceu o primeiro grande centro comercial de Angola, o Bellas Shopping. “Quando cheguei, em 2001, Luanda Sul era só capim. Isto tudo cresceu quase do dia para a noite. Eu tive a percepção do que é um país crescer.” O sonho angolano (ou a ilusão de um país, de acordo com a perspectiva), pelos olhos de Cau.

Com 39 anos, este engenheiro mecânico que está a tentar criar uma empresa de apoio à indústria petrolífera, pisou Angola pela primeira vez em 1997, recrutado pela Empresa Pública de Águas de Lisboa. No fim desse ano, depois do projecto não ter resultado, viajou outra vez para Portugal, onde vivera antes. Cinco anos depois, nova volta. Regresso a Luanda, desta vez como quadro de uma empresa portuguesa de construção. “Quando cheguei ainda havia guerra. A cidade era um caos total, nada funcionava, havia montanhas de lixo que chegavam aos três metros”, recorda. Conviviam então “dois mundos – o dos que eram de cá, e o dos estrangeiros”. Optou pelo segundo, escolha que estaria para ir por água abaixo. Depois de um divórcio, conheceu Neusa, de quem tem uma filha, Nahary. A partir daí “tudo mudou”, e começou a entrar “a fundo na sociedade angolana, e a tentar compreendê-la na sua raiz”, conta.


Vanessa Godinho, consultora praiense de 34 anos, chegou pouco tempo depois, em 2003, para se juntar ao marido, Ricardo Godinho, que já cá vivia. O choque foi imediato: “Pensava que, como africana e cabo-verdiana, ia entrar como uma luva em Angola. Mas quando aterrei e vi os musseques [bairros degradados e pobres] e a miséria humana que ainda hoje existem, fiquei extremamente incomodada. Não conseguia passar pelas pessoas como se elas fossem paisagem.” Nem Nádia Neves, gestora de projectos numa empresa de construção, chegada muito mais recentemente, em Maio de 2008. “Impressionaram-me a sujidade, as águas paradas e o trânsito caótico” que abafam a capital, relata. Naquele momento compreendeu que, para se enquadrar, tinha que “aprender a viver em Luanda”.

Esta aprendizagem não é fácil, mas é possível. Ricardo Godinho, badiu di Praia, com 39 anos, condiciona-a a três factores: “conhecer alguém que faça uma boa introdução a Luanda; analisar o contexto de forma a não tirar conclusões precipitadas; e motivação pessoal.” Da teoria à prática, as adaptações ao meio foram-se processando. “Tive, por exemplo, que me habituar a ferver e a filtrar água para beber ou para dar banho ao meu filho”, relembra o assessor de administração/administrador de empresas do grupo angolano Invista, aterrado em Angola, pela primeira vez, em 2003.


À medida que o dia-a-dia se vai desenrolando na “Lua”, nominho-metáfora da capital angolana, as ideias pré-concebidas e imagens de faz de conta vão-se desvanecendo. É assim que se descobre que, afinal, a criminalidade, esse bicho sempre associado a Luanda, não terá as sete cabeças que tanto se propagandeia. “Vou fazer um ano em Angola e ainda não senti essa insegurança”, testemunha Nádia, que acrescenta: “Ando muito a pé, por causa do trânsito caótico, moro sozinha, saio e chego às horas que quero, mesmo à noite, e nunca aconteceu nada”. “Basicamente é uma questão de atitude”, resume Cau, para quem “os angolanos sempre trataram os cabo-verdianos de igual para igual, como irmãos”.

O El Dorado não existe

A conversa interrompe-se. É hora de deixar a praia. Da ilha para a “Nha Cretcheu”, casa de praia do sogro de Cau que, sendo angolano, “é apaixonado por tudo o que diga respeito a Cabo Verde”, conta. O “Budjurra” parte da ilhota e arranca a todo o gás. Dez minutos depois, acosta-se à praia mesmo em frente a uma “Nha Cretheu” (faltou um “c” na hora de baptizar a casa) com toques de capim e de madeira que assenta no areal, perfeitamente enquadrada pelos coqueiros que dão o toque tropical ao Mussulo.

Funje de bombó (massa de mandioca) e de milho, moamba de galinha, quiabos e feijão de óleo de palma salpicado com farinha angolana (mandioca torrada moída), e farinha brasileira trazida pelos “kambas” brasileiros da dona da casa. Sabores tipicamente angolanos com cheirinho de Salvador da Bahía, servidos no jango (construção redonda, de tecto de capim, tradicional de Angola). Lá dentro, na meia-luz do sol que entra pelas frinchas e aberturas tipo janela, uma dessas mesas compridas de madeira onde quase sempre se desenrolam as famosas almoçaradas angolanas – comezainas bem regadas a vinho, cerveja e uísque, que começam a meio da tarde e acabam já noite dentro, por entre kizombas, sembas e aquelas passadas com que os “mwangolés” gostam de dar “show”. “Cabo-verdiano canta, angolano dança e moçambicano bate palmas!”, diz-se, por entre gargalhadas, ante a pronta objecção bem-disposta de um moçambicano ali presente.


Mas no final das contas, nada de kizombadas. A música é bem crioula – roda na aparelhagem o disco “Navega” de Mayra Andrade que, por sinal, viveu parte da sua vida em Luanda. Passagem que ela faz questão de relembrar sempre que vem cantar à cidade da kianda (sereia). 

Já cá fora no quintal numa tarde tropical, os cinco amigos cabo-verdianos que se encontraram em Angola retomam a conversa. Falam do seu papel em Angola e do conhecido refrão “Vou para Angola fazer dinheiro e ficar rico” que anda de boca em boca, não só de cabo-verdianos, mas também de portugueses, brasileiros, e outros povos africanos e europeus. Uma postura promovida, sobretudo, pela propaganda do próprio Estado angolano, que solta aos sete ventos índices de crescimento acima dos dois dígitos em plena crise mundial cujas repercussões no país rejeitou, inicialmente (a queda, este ano, será abrupta, contra todas as previsões iniciais), e também pelas notícias que vêm de Angola, que dão conta de salários milionários.

Cau franze o sobrolho e atira: “Angola esteve parada durante 30 anos, pelo que é normal que, mesmo numa época de crise económica, exista um certo crescimento. Criou-se uma imagem falsa de Angola. Emigrar ou fazer negócios neste país é um risco muito grande.”

A experiência do mindelense que há oito anos vive em Luanda permitiu-lhe constatar o abandono “diário” do país, com o rabinho entre as pernas, de “empresas que se instalaram aqui a pensar que Angola era uma escapatória para a crise, um sítio onde iriam fazer muito dinheiro de um dia para o outro” A aventura “não resultou”, pelo simples facto de “não conhecerem a realidade local”, aponta. Para Cau, a única forma de evitar erros deste calibre consiste em ter uma boa dose de paciência e em fazer uma série de contas de somar e multiplicar bastante simples: “por exemplo, um apartamento com dois quartos pode custar, em Luanda, cinco mil dólares por mês. Tendo em conta que o senhorio exige o pagamento adiantado das rendas do ano inteiro, são 60 mil dólares. Quem não tem esse capital para investir em alojamento, fica em maus lençóis. Mas há outros problemas. Eu próprio estou a criar uma empresa há dois meses e ainda estou à espera de começar a trabalhar. Até quando, não sei. Essa é a realidade angolana, é tudo muito lento, muito difícil”.

Na mesma tónica, Ricardo alerta os potenciais investidores que, “antes de qualquer passo, conheçam o mercado angolano”, uma vez que “a abertura ao investimento privado até pode ser real, mas na prática existem ainda muitos obstáculos”. Ao mesmo tempo, realça, “é muito importante que os empresários estrangeiros tenham um parceiro angolano ou pessoas que conheçam bem o mercado local, para que façam as coisas com os pés bem assentes no chão.”

Expatriados

A ilusão do dinheiro fácil que muitos sectores da sociedade angolana chamam de “predatória” e “neo-colonialista” não parte só dos empresários. Alguns dos chamados “expatriados”, estrangeiros contratados no país de origem por empresas já fixadas em Angola, incluem-se no grupo dos que buscam no país um jorro incessante de dólares directamente canalizado para as suas contas bancárias. Mas mesmo nestes casos, mais ou menos assegurados por contratos feitos à distância, que têm por base salários chorudos e por acréscimo um rol interminável de regalias (habitação, transporte, alimentação, viagens, subsídios, seguro de saúde, etc, etc, que deixam os angolanos com as mesmas funções com os cabelos em pé) “a situação pode não ser linear”, alerta Ricardo. “As pessoas lá fora não conseguem ter uma verdadeira noção dos custos de vida em Angola, pelo que muitas vezes o que parece, não é”, salienta. Ainda que muitos tenham condições extra-salário, convém “informarem-se previamente junto de pessoas que estejam já em Luanda, para melhor poderem negociar os seus contratos e não terem surpresas desagradáveis”.


Esta verdadeira “obsessão pela riqueza”, que para muitos reduz Angola a uma enorme (e inexistente) caixa registadora é, para Vanessa, “irreal e ridícula”. A consultora conta que recebe constantemente “telefonemas e emails de amigos que tentam referenciar pessoas à procura de trabalho”. “É gente que nem sequer tem, muitas vezes, experiência profissional ou formação superior. Acham que basta chegar aqui para terem um emprego de topo e ganharem milhões, o que não cabe na cabeça de ninguém!”, insurge-se. Visivelmente incomodada com a situação, nota ainda que, como em qualquer parte do mundo, também em Angola pode-se ganhar muito dinheiro, sim, mas “é preciso trabalhar muito”, ainda que “alguns desses charlatões e profissionais medíocres que vêm de fora acabem por vencer”. Uma situação que, diz, “o Estado angolano tem que ter em atenção”.

Ricardo toma a palavra e critica esse comportamento. “Pessoas como essas, Angola não precisa”, atira. Na mesma direcção, aponta que “quem vier só por dinheiro vai-se dar mal.” “As exigências de adaptação a Luanda são tão grandes, que se uma pessoa não cria um vínculo à terra vai passar mal”. Enquanto fala, brinca ali por perto, com a água que sai de uma mangueira, o único filho de Ricardo e Vanessa, que há três anos o casal fez questão que nascesse em Angola. Primeiro nome: Mauro. Segundo: “Yetu”, palavra que na língua angolana kimbundu significa “nosso”.


Evoluir para depois voltar

O que procuram então estes cinco cabo-verdianos em Angola, se o dinheiro não é o principal objectivo? “A curva exponencial de crescimento profissional que Angola proporciona”, aponta Nádia, resumindo a opinião de todos. Uma evolução possível caso exista “alguma experiência profissional prévia”. “Angola não precisa de nós se viermos para receber formação. É exactamente o contrário: aqui a nossa função é formar pessoas”, expõe.

Ricardo acrescenta um ponto: “Angola é um desafio constante, mesmo para quem já tenha experiência, porque exige uma capacidade de adaptação e de flexibilidade constante e muita criatividade para encontrar soluções. Isto é uma escola de vida.”

É exactamente esta dinâmica alucinante que faz os cinco jovens adiar o regresso a Cabo Verde, uma meta que todos desejam alcançar um dia. Cau dá a tónica do discurso deste grupo de jovens crioulos em Luanda. Segundo ele, “Cabo Verde precisa dos seus quadros maduros, não verdes”. Trocado por miúdos: “com o excesso de profissionais em Cabo Verde, poderei dar um maior contributo quando voltar como quadro sénior ou especialista”.


A ouvir atentamente a conversa nesta tarde no Mussulo, está o casal Katya Ramos e Jailson de Melo. Primos de Nádia, estão de férias em Angola há três semanas. O motivo que os trouxe é muito interior. “Nasci em Luanda, onde vivi até aos 14 anos. Em 1992, com a guerra, fui-me embora. Dezassete anos depois voltei”. História pessoal de Katya, arquitecta na Câmara Municipal do Sal. Encontrou uma cidade “totalmente diferente”, mas ainda assim gostaria de regressar. À semelhança da sua prima, quer “crescer profissionalmente” com “os desafios” que a sua terra natal apresenta.

Jailson de Melo, também arquitecto e marido de Katya, alinha no mesmo diapasão: “Em Cabo Verde o mercado é um pouco deslocado e há muitas vezes a tentação de preterir o nacional pelo estrangeiro, que supostamente é sempre melhor”. Se um dia vêm ou não, só o futuro o dirá.

Artigo publicado na revista do jornal A Semana (2009)

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