Mascogos. Os índios africanos cantam blues
Quando a liberdade é questão de vida ou morte, a Humanidade supera-se sem filtros. Há 170 anos, escravos africanos e tribos de índios uniram-se numa fuga desesperada dos Estados Unidos para o México. Em serras áridas na linha de fronteira, construíram uma comunidade com língua e cultura próprias. El Nacimiento é ainda hoje a casa dos Mascogo, os índios negros com blues na voz.
Contam as imagens que a terra é montanha em El Nacimiento. Duas ruas no norte seco do México, duas igrejas – católica e evangélica -, remoinhos de pó e terra. Um par de árvores centenárias a dar sombra a cavalos, calor escaldante. Aqui viveu Gertrudis. “Sou negra, feia, mas clarividente”, cartão de apresentação no documentário Gertrudis Blues. É a grande voz do “capeyuye”, cânticos dos “índios negros da América do Norte”. Soa a blues, soa a gospel, tem variações de voz a lembrar a toada dos nativos norte-americanos. Em inglês, a anciana canta a “mother” que “has gone”. Ou o ano novo, “happy, happy new year”. Com palmas, marca o compasso. Um coro em círculo responde ao ritmo e à prece.
Nessa tarde em El Nacimiento, poucos anos antes de deixar o mundo, Gertrudis pausa a voz e relembra as histórias dos mais velhos que ela. Conta o mito de criação mascogo. “Vieram os meus avós com a minha mãe desde os Estados Unidos, quando expulsaram os índios de lá. A minha mãe disse-me ‘we ran’, isso significa que correram”. “Eles”, os pais e avós de Gertrudis, “eram escravos dos gringos” e tinham uma missão: “matar os índios Kikapú”, uma tribo índia no sul dos Estados Unidos de quem as autoridades se queriam desfazer.
No entanto, as coisas não correram como planeado, relata Gertrudis: “Os negros foram para matá-los, e quando encontraram os Kikapú, junto à fronteira com o México, houve uma criança, um índio, que implorou ao chefe dos negros: “Por favor, não nos matem!’. O chefe negro ficou comovido, e foi assim que se resolveram unir e fugir todos juntos para cá”.
A crónica que passou de boca em boca com o tempo é apenas uma parte de uma história antiga que recua à Flórida do século XVIII. Na altura, a península estava dividida entre espanhóis e ingleses, ali a escravatura ainda não era prática comum. A liberdade dessas bandas fez da região um refúgio perfeito para os seminoles, tribo de índios rebeldes, e para os escravos fugidos das plantações de arroz e algodão da Carolina do Sul, Geórgia e Alabama. Durante anos, conviveram, casaram-se, tiveram filhos. Deram origem aos “black seminoles”, os índios negros conhecidos no México como “mascogos”.
O paraíso para fugitivos e rebeldes terminou em 1818, quando esclavagistas avançaram Florida adentro para acabar de uma vez com o esconderijo dos escravos. Nos quarenta anos seguintes, as guerras contra os povos nativos e mascogos, que terminou na anexação da Flórida aos Estados Unidos, obrigaram índios, negros e índios-negros a fugir da região.
Nessa tarde em El Nacimiento, poucos anos antes de deixar o mundo, Gertrudis pausa a voz e relembra as histórias dos mais velhos que ela. Conta o mito de criação mascogo. “Vieram os meus avós com a minha mãe desde os Estados Unidos, quando expulsaram os índios de lá. A minha mãe disse-me ‘we ran’, isso significa que correram”. “Eles”, os pais e avós de Gertrudis, “eram escravos dos gringos” e tinham uma missão: “matar os índios Kikapú”, uma tribo índia no sul dos Estados Unidos de quem as autoridades se queriam desfazer.
No entanto, as coisas não correram como planeado, relata Gertrudis: “Os negros foram para matá-los, e quando encontraram os Kikapú, junto à fronteira com o México, houve uma criança, um índio, que implorou ao chefe dos negros: “Por favor, não nos matem!’. O chefe negro ficou comovido, e foi assim que se resolveram unir e fugir todos juntos para cá”.
A crónica que passou de boca em boca com o tempo é apenas uma parte de uma história antiga que recua à Flórida do século XVIII. Na altura, a península estava dividida entre espanhóis e ingleses, ali a escravatura ainda não era prática comum. A liberdade dessas bandas fez da região um refúgio perfeito para os seminoles, tribo de índios rebeldes, e para os escravos fugidos das plantações de arroz e algodão da Carolina do Sul, Geórgia e Alabama. Durante anos, conviveram, casaram-se, tiveram filhos. Deram origem aos “black seminoles”, os índios negros conhecidos no México como “mascogos”.
O paraíso para fugitivos e rebeldes terminou em 1818, quando esclavagistas avançaram Florida adentro para acabar de uma vez com o esconderijo dos escravos. Nos quarenta anos seguintes, as guerras contra os povos nativos e mascogos, que terminou na anexação da Flórida aos Estados Unidos, obrigaram índios, negros e índios-negros a fugir da região.
Em 2012, o México declarou os mascogos como povo originário (El Siglo Coahuila).Na correria pela liberdade, em 1849 as tribos seminoles, guiadas por Gato Selvagem, e os “black seminoles”, liderados por John Horse, uniram-se numa fuga conjunta pelo sul dos Estados Unidos para o México, país onde a escravatura tinha sido abolida vinte anos antes. Quando chegaram à fronteira, contam as crónicas, este grupo de cem refugiados foi contratado por fazendeiros norte-americanos para dizimar a tribo nativa dos Kikapús. Em troca, receberiam dinheiro e víveres para prosseguir caminho. Como relembra Gertrudis, e confirma a História, em vez disso, Gato Selvagem e John Horse – que os mascogos conhecem por Juan Caballo – protegeram os Kikapús e convenceram-nos a unir-se no seu exílio no México.
O riacho e os ciprestes
No México, estes eram tempos complicados. O país perdera um ano antes, em 1848, quase metade do território para o nascente vizinho do Norte. Tribos índias atacavam sem cessar a nova e frágil linha da fronteira.
A chegada dos refugiados índios e afrodescendentes ao estado nortenho de Coahuíla caiu com uma luva ao governo do México. Kikapús, seminoles e índios negros (a partir de então conhecidos como mascogos) receberam 7200 hectares de terras para se estabelecerem. Condição única: tinham de defender militarmente a fronteira dos ataques gringos.
Numa carta de 1872 (uma das relíquias que os mascogos ainda guardam como um tesouro), o líder Juan Caballo relembra o episódio. “Tenho comigo o título da terra que é nossa propriedade no México (…) a terra tem o nome de Nacimiento, tem um precioso riacho de água corrente e ciprestes grandes na terra, e tem nove milhas quadradas. Esta terra foi-nos dada pelo [presidente mexicano] Santana por lutar contra os índios”.
Girtrudes, matriarca e cantadeira dos mascogos (Girtrudes Blues)Em pouco tempo, o grupo de refugiados dividiu-se. A tribo seminole regressou quase de imediato aos Estados Unidos. Vinte anos mais tarde, quase todos os mascogos também já se tinham mudado para o Texas, iludidos por promessas das autoridades norte-americanas que nunca se cumpriram. Em 1873, já em terra texana, Juan Caballo queixava-se na tal carta-relíquia: “Nasci na Flórida, a minha gente foi tirada dali e levada para o Arkansas. Roubaram-nos tudo quando deixámos na Flórida. As casas, o gado, os cavalos e tudo o que tínhamos. E o governo prometeu que nos ia pagar por tudo o que perdemos, e que teríamos terras para construir casa e nos dariam tudo o que precisássemos durante oito anos, mas tal não aconteceu”. A transcrição é do jornalista mexicano Juan Castro, numa reportagem publicada no diário Vanguardia.
Em 1876, um atentado contra o líder mascogo apressou o regresso do seu povo a El Nacimiento. Juan Caballo não voltou mais à terra onde nascera. No que lhe restou de vida, integrou o Exército Mexicano, chegou a coronel. Morreu aos 70 anos, em 1882, quando viajava para a Cidade do México para um encontro com o então presidente Porfirio Diaz. Há quem diga que foi assassinado.
Povo originário
Quando Juan Caballo morreu, El Nacimiento já estava bem assentado num território partilhado com os inesperados aliados Kikapús. Esta tribo ainda hoje mora numa comunidade vizinha a El Nacimiento. Os quase dois séculos de história em comum deixaram marcas fortes, sobretudo no dialeto mascogo, que mistura, segundo os entendidos, o inglês, a língua kikapú, palavras de origem africana e até espanhol. Nas pausas dos cânticos “capeyuye” no documentário “Girtrudes Blues”, a matriarca dos mascogo confirma esta relação e relembra algumas palavras que aprendeu quando era pequena. “Nós somos os makatemis, que é como os kikapús dizem negros”, exemplifica.
Pouco a pouco, palavras como estas vão-se enterrando nos caminhos empoeirados da serra de Coahuila. Figuras como Girtrudes que descendem diretamente dos refugiados originários, já quase desapareceram. O outrora “maravilho riacho” que Juan Caballo descreveu, já não corre. A seca acabou com o murmulhar das águas. As casas de adobe meio rebocadas, meio por rebocar aguentam-se em pé a custo. Algumas estão abandonadas, são ruínas das pessoas que saíram para as cidades grandes ou que emigraram para os Estados Unidos, onde quase todos têm família.
A povoação vive agora num limbo seco. Entre quem ali vive, menos de 300 pessoas, há quem resista e queira recuperar a língua, os cânticos, as vestimentas coloridas às bolinhas que fizeram tradição entre os mascogos. Praticamente invisível durante décadas intermináveis, em 2012 o México reconheceu oficialmente esta “tribo”, como agora lhe chamam, como “povo originário” do país. Afromexicanos, sublinham. A distinção dá algumas certezas – proteção do território e difusão da cultura própria -, mas é uma gota de água numa luta maior.
Os mais novos sabem disso e começam a crescer em El Nacimiento iniciativas para reavivar a memória. A festa da “independência” dos mascogos continua a ser um dia especial. É a cada 19 de junho, dia que assinala a abolição da escravatura no Texas, em 1865. Data simbólica, que mostra o carácter binacional deste povo com raízes em ambos lados da fronteira.
Antigamente, conta Girtrudes, os antepassados juntavam-se na igreja e falavam abertamente dos sonhos da noite anterior. “Queriam saber o que Deus lhes tinha mostrado durante o sono”. Ela não contava nada. “Não queria saber”. A incerteza alimentava o sonho como forma de o tornar eterno. Como os sonhos de Girtrudes, a comunidade mascogo – índia, africana, mexicana, gringa – é humanidade frente a um espelho. Uma utopia em ciclo contínuo e em aberto.
O riacho e os ciprestes
No México, estes eram tempos complicados. O país perdera um ano antes, em 1848, quase metade do território para o nascente vizinho do Norte. Tribos índias atacavam sem cessar a nova e frágil linha da fronteira.
A chegada dos refugiados índios e afrodescendentes ao estado nortenho de Coahuíla caiu com uma luva ao governo do México. Kikapús, seminoles e índios negros (a partir de então conhecidos como mascogos) receberam 7200 hectares de terras para se estabelecerem. Condição única: tinham de defender militarmente a fronteira dos ataques gringos.
Numa carta de 1872 (uma das relíquias que os mascogos ainda guardam como um tesouro), o líder Juan Caballo relembra o episódio. “Tenho comigo o título da terra que é nossa propriedade no México (…) a terra tem o nome de Nacimiento, tem um precioso riacho de água corrente e ciprestes grandes na terra, e tem nove milhas quadradas. Esta terra foi-nos dada pelo [presidente mexicano] Santana por lutar contra os índios”.
Girtrudes, matriarca e cantadeira dos mascogos (Girtrudes Blues)Em pouco tempo, o grupo de refugiados dividiu-se. A tribo seminole regressou quase de imediato aos Estados Unidos. Vinte anos mais tarde, quase todos os mascogos também já se tinham mudado para o Texas, iludidos por promessas das autoridades norte-americanas que nunca se cumpriram. Em 1873, já em terra texana, Juan Caballo queixava-se na tal carta-relíquia: “Nasci na Flórida, a minha gente foi tirada dali e levada para o Arkansas. Roubaram-nos tudo quando deixámos na Flórida. As casas, o gado, os cavalos e tudo o que tínhamos. E o governo prometeu que nos ia pagar por tudo o que perdemos, e que teríamos terras para construir casa e nos dariam tudo o que precisássemos durante oito anos, mas tal não aconteceu”. A transcrição é do jornalista mexicano Juan Castro, numa reportagem publicada no diário Vanguardia.
Em 1876, um atentado contra o líder mascogo apressou o regresso do seu povo a El Nacimiento. Juan Caballo não voltou mais à terra onde nascera. No que lhe restou de vida, integrou o Exército Mexicano, chegou a coronel. Morreu aos 70 anos, em 1882, quando viajava para a Cidade do México para um encontro com o então presidente Porfirio Diaz. Há quem diga que foi assassinado.
Povo originário
Quando Juan Caballo morreu, El Nacimiento já estava bem assentado num território partilhado com os inesperados aliados Kikapús. Esta tribo ainda hoje mora numa comunidade vizinha a El Nacimiento. Os quase dois séculos de história em comum deixaram marcas fortes, sobretudo no dialeto mascogo, que mistura, segundo os entendidos, o inglês, a língua kikapú, palavras de origem africana e até espanhol. Nas pausas dos cânticos “capeyuye” no documentário “Girtrudes Blues”, a matriarca dos mascogo confirma esta relação e relembra algumas palavras que aprendeu quando era pequena. “Nós somos os makatemis, que é como os kikapús dizem negros”, exemplifica.
Pouco a pouco, palavras como estas vão-se enterrando nos caminhos empoeirados da serra de Coahuila. Figuras como Girtrudes que descendem diretamente dos refugiados originários, já quase desapareceram. O outrora “maravilho riacho” que Juan Caballo descreveu, já não corre. A seca acabou com o murmulhar das águas. As casas de adobe meio rebocadas, meio por rebocar aguentam-se em pé a custo. Algumas estão abandonadas, são ruínas das pessoas que saíram para as cidades grandes ou que emigraram para os Estados Unidos, onde quase todos têm família.
A povoação vive agora num limbo seco. Entre quem ali vive, menos de 300 pessoas, há quem resista e queira recuperar a língua, os cânticos, as vestimentas coloridas às bolinhas que fizeram tradição entre os mascogos. Praticamente invisível durante décadas intermináveis, em 2012 o México reconheceu oficialmente esta “tribo”, como agora lhe chamam, como “povo originário” do país. Afromexicanos, sublinham. A distinção dá algumas certezas – proteção do território e difusão da cultura própria -, mas é uma gota de água numa luta maior.
Antigamente, conta Girtrudes, os antepassados juntavam-se na igreja e falavam abertamente dos sonhos da noite anterior. “Queriam saber o que Deus lhes tinha mostrado durante o sono”. Ela não contava nada. “Não queria saber”. A incerteza alimentava o sonho como forma de o tornar eterno. Como os sonhos de Girtrudes, a comunidade mascogo – índia, africana, mexicana, gringa – é humanidade frente a um espelho. Uma utopia em ciclo contínuo e em aberto.
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