De Colombo, raças e pedestais
Nos Estados Unidos, a até aqui celebrada figura de Colombo, o herói do colorido “Columbus Day”, virou besta. Durante as manifestações anti-racistas, estátuas de Colombo por todo o país foram decapitadas e arrastadas pelo chão, espezinhadas. Nos EUA, o capitão genovês é um diabo de bronze a aniquilar, o culpado inicial de uma hecatombe de séculos – escravatura, extermínio ameríndio, exploração – da qual o homicídio de George Floyd foi um episódio mais .
Entretanto, os massacres das populações indígenas continuam por toda a América Latina. A terra continua a ser-lhes negada. A participação política também. Durante anos, a Bolívia foi uma esperança a meia-luz, com muitos à espreita de uma escorregadela do índio, para um golpe mascarado. O país é hoje um caos esquecido.
Este caldeirão em ebulição, do qual Colombo parece ser agora o culpado-mor, é um efeito colateral de séculos de história e dominação, dizem os académicos. Como uma ténia que cresce há séculos com mutações genéticas nos entretantos que lhe reforçaram a gula. Faz sentido. No entanto, cansados de usar o passado como justificação, muitos chamam-lhe hipocrisia. Para eles, os fantasmas das naus continuam entre nós. E não vivem em estátuas.
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O lado de cá não tinha nada de novo quando Cristóvão Colombo chegou à ilha caribenha de Guanahaní, a 12 de Outubro de 1492. Mas ainda hoje, a América é o epopeico “novo mundo” nos livros de história.
De primeiro não-americano a chegar aqui, Colombo também não tinha nada. Os primeiríssimos, teoriza a História, eram asiáticos, cruzaram o congelado estreito de Bering há uns 20 mil anos e colonizaram a então desabitada América. Criaram civilizações impressionantes. No entanto, a chegada do Pinta, Nina e Santa Maria, no século XV, ainda hoje é vista como o ponto zero da “modernidade” nestas bandas até então selvagens.
Nos últimos dias, esta história bomba-relógio não se susteve mais no seu tic-tac precário. Nos Estados Unidos, a até aqui celebrada figura de Colombo, o herói do colorido “Columbus Day”, virou a besta. Durante as manifestações anti-racistas, estátuas de Colombo por todo o país foram decapitadas e arrastadas pelo chão, espezinhadas. Nos EUA, o capitão genovês é um diabo de bronze a aniquilar, o culpado inicial de uma hecatombe de séculos – escravatura, extermínio ameríndio, exploração – da qual o homicídio de George Floyd foi um episódio mais.
A revolta contra este símbolo inerte surpreende quando vem do norte, mas na América Latina não é novidade. Colombo é uma hidra de mil cabeças, e a primeira vez que o decapitaram foi a 12 de Outubro de 2004, na Venezuela de Hugo Chávez. Em apenas 30 segundos, mil pessoas derrubaram quinhentos e trinta e dois anos de má memória de um pedestal no centro de Caracas. Fizeram um julgamento sumário. A estátua não se defendeu e condenaram-na à forca. Foi a segunda morte de Colombo, meio milénio depois. Do outro lado do Atlântico, a histeria foi imediata. Espanha e Itália apressaram-se a condenar o acto, sem actos de contrição. No lugar onde antes estava o capitão, em 2015 o governo venezuelano ergueu a estátua de um cacique que lutou até à morte contra a invasão espanhola, o mítico Guaicaipuro.
Dizem que na altura Hugo Chávez não gostou do que viu, mas dois anos antes da vingança venezuelana contra Cristóvão Colombo, o governante já tinha dado um passo importante para revolucionar o significado do dia 12 de Outubro. Foi em 2002, quando o chamado “Dia da Raça”, celebrado em Espanha e na América Latina desde o final dos anos 30, passou a chamar-se “Dia de Resistência Indígena”. Vários países da região entenderam a mensagem e copiaram a ideia. “Dia da Resistência”, “Dia dos Povos Originários”, “Dia do Encontro entre Duas Cultura”, hoje os nomes variam de Tijuana a Ushuaia.
As novas expressões são bonitas, reivindicam uma identidade pré-colombina (termo generalizado na América Latina, que por si só diz muita coisa). Decapitar estátuas, maldizer o dia em que Colombo e Deus pisaram o tal do “novo mundo” é patriótico, mas na verdade, em muitos destes países, a tal “identidade originária” que se exalta uma vez por ano é mais folclore que outra coisa. Colombo é a encarnação de um mal que a América Latina nega, mas perpetua. O novo colono tem bilhete de identidade nacional. Numa lógica copy-paste, exalta a histórica azteca, maia ou inca, enche o peito de orgulho imperialista e de nostalgia colorida de uma cultura que despreza no dia-a-dia.
De primeiro não-americano a chegar aqui, Colombo também não tinha nada. Os primeiríssimos, teoriza a História, eram asiáticos, cruzaram o congelado estreito de Bering há uns 20 mil anos e colonizaram a então desabitada América. Criaram civilizações impressionantes. No entanto, a chegada do Pinta, Nina e Santa Maria, no século XV, ainda hoje é vista como o ponto zero da “modernidade” nestas bandas até então selvagens.
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A revolta contra este símbolo inerte surpreende quando vem do norte, mas na América Latina não é novidade. Colombo é uma hidra de mil cabeças, e a primeira vez que o decapitaram foi a 12 de Outubro de 2004, na Venezuela de Hugo Chávez. Em apenas 30 segundos, mil pessoas derrubaram quinhentos e trinta e dois anos de má memória de um pedestal no centro de Caracas. Fizeram um julgamento sumário. A estátua não se defendeu e condenaram-na à forca. Foi a segunda morte de Colombo, meio milénio depois. Do outro lado do Atlântico, a histeria foi imediata. Espanha e Itália apressaram-se a condenar o acto, sem actos de contrição. No lugar onde antes estava o capitão, em 2015 o governo venezuelano ergueu a estátua de um cacique que lutou até à morte contra a invasão espanhola, o mítico Guaicaipuro.
Dizem que na altura Hugo Chávez não gostou do que viu, mas dois anos antes da vingança venezuelana contra Cristóvão Colombo, o governante já tinha dado um passo importante para revolucionar o significado do dia 12 de Outubro. Foi em 2002, quando o chamado “Dia da Raça”, celebrado em Espanha e na América Latina desde o final dos anos 30, passou a chamar-se “Dia de Resistência Indígena”. Vários países da região entenderam a mensagem e copiaram a ideia. “Dia da Resistência”, “Dia dos Povos Originários”, “Dia do Encontro entre Duas Cultura”, hoje os nomes variam de Tijuana a Ushuaia.
As novas expressões são bonitas, reivindicam uma identidade pré-colombina (termo generalizado na América Latina, que por si só diz muita coisa). Decapitar estátuas, maldizer o dia em que Colombo e Deus pisaram o tal do “novo mundo” é patriótico, mas na verdade, em muitos destes países, a tal “identidade originária” que se exalta uma vez por ano é mais folclore que outra coisa. Colombo é a encarnação de um mal que a América Latina nega, mas perpetua. O novo colono tem bilhete de identidade nacional. Numa lógica copy-paste, exalta a histórica azteca, maia ou inca, enche o peito de orgulho imperialista e de nostalgia colorida de uma cultura que despreza no dia-a-dia.
Entretanto, os massacres das populações indígenas continuam por toda a América Latina. A terra continua a ser-lhes negada. A participação política também. Durante anos, a Bolívia foi uma esperança a meia-luz, com muitos à espreita de uma escorregadela do índio, para um golpe mascarado. O país é hoje um caos esquecido.
Este caldeirão em ebulição, do qual Colombo parece ser agora o culpado-mor, é um efeito colateral de séculos de história e dominação, dizem os académicos. Como uma ténia que cresce há séculos com mutações genéticas nos entretantos que lhe reforçaram a gula. Faz sentido. No entanto, cansados de usar o passado como justificação, muitos chamam-lhe hipocrisia. Para eles, os fantasmas das naus continuam entre nós. E não vivem em estátuas.
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