Como história de amor e piratas: os 50 anos de “As Veias Abertas da América Latina”

Nos anos 70, o livro “As Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, foi uma bofetada às ditaduras da Operação Condor. A obra esmiúça 400 anos de saqueio dos recursos da região, desde a conquista europeia até à segunda metade do século XX. Uma história de depredação para explicar o ciclo de pobreza e exclusão da América Latina. Publicado em 1971, “As Veias”, como se referia Galeano ao seu livro icónico, faz 50 anos.


Eduardo Galeano não foi homem de uma obra só, mas “As Veias Abertas da América Latina” é, sem dúvida, a que mais o sublinhou com autor e intelectual em todo o mundo. Em 1971, com 31 anos, o escritor uruguaio escreveu um ensaio que marcou a esquerda latino-americana de então e alertou para o que dizia serem as “mentiras” e “deturpação” da história oficial da região. Um livro-denúncia, portanto.

A ideia central era “simples”: demonstrar que a pobreza, o sofrimento e o subdesenvolvimento não são um estado natural da América Latina, mas sim o fruto da depredação histórica e contínua por países como a Espanha, Reino Unido ou Estados Unidos, em conluio com as elites locais. “A divisão internacional do trabalho consiste em que uns países se especializam em ganhar e outros em perder”, escreve. “A nossa comarca no mundo, a que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os tempos remotos em que os europeus do Renascimento se lançaram através do mar e afundaram os dentes na nossa garganta. Passaram os séculos e a América Latina aperfeiçoou as suas funções (…) A região continua a trabalhar como servente”.

A também chamada “Bíblia Latino-Americana” expõe, assim, o ciclo de pilhagem e pobreza durante os ciclos do ouro, prata, algodão, café, banana, açúcar, cacau e borracha que esgotaram a terra e cobraram a vida de um número incontável de indígenas, africanos e populações pobres. Esta máquina depredadora impulsionou as revoluções industriais europeias e a economia gringa, e hoje impõe multinacionais-tentáculos que controlam a produção, distribuição e venda de insumos aos produtores locais em toda a América Latina. Todo um sistema baseado na escravidão pura e dura, no passado, e que se disfarçou, com o tempo, num sistema de salários de fome que ainda hoje persiste.


Mais que um livro de História, esta é uma trama muito humana, escrita com linguagem simples e direta. Para criar “As Veias Abertas da América Latina”, o autor viajou pela região. As páginas alternam um sem número de citações bibliográficas, números e relatórios com a vida em si. Conta histórias de gente real, descreve cenários do que restou da opulência de grandes capitais efémeras da riqueza da região, como Potosí, na Bolívia, aos pés da maior “montanha de prata” alguma vez encontrada. Hoje um lugar empoeirado.

Foi esta mistura entre relato histórico e crónica da vida real, pé no chão com poeira à mistura, que que deu o carácter revolucionário e transgressor ao livro. Na obra póstuma “O caçador de histórias”, Eduardo Galeano relembra como “As Veias”, como lhe chama, foi desconsiderada inicialmente entre os seus. “Em 1970, apresentei [o livro] no concurso da Casa das Américas, em Cuba. E perdi. Segundo o júri, essa obra não era séria. Nos anos 70, a esquerda identificava toda a seriedade com o aborrecimento”. Anos depois, diria: “Sei que pôde parecer um sacrilégio que este manual de divulgação falasse de economia política ao estilo de um romance de amor ou de piratas. Acho que não há vaidade na alegria de comprovar, depois de tanto tempo, que ‘As veias’ não foi um livro mudo”.

Tinha razão. O livro, com linguagem terra-a-terra, foi devorado por uma juventude amordaçada pelas ditaduras latino-americanas dos anos 70, que o elevou a obra mítica. No epílogo “Sete anos depois”, o escritor uruguaio recordava histórias paralelas. Como a de uma ativista chilena que, quando fugiu da ditadura de Pinochet, escondeu o livro entre as fraldas da sua bebé. Ou a de uma mulher em Bogotá que o lia em voz alta nos autocarros públicos. Ou a de um argentino que, sem dinheiro, saltava de livraria em livraria para o ler aos poucos.

Proscrita em países autoritários da época como o Uruguai, Argentina, Brasil e Chile, “As Veias” receberam dos próprios censores o impulso que faltava para se tornar icónica, relembra Galeano anos depois, divertido: “[O livro] teve a sorte de ser muito elogiado pelas ditaduras militares, que o proibiram. Na verdade, daí veio o prestígio, porque até então não tinha vendido exemplares, nem a família o comprava”. Nas prisões da ditadura uruguaia, relembra, passava de mão em mão. “Os censores uruguaios, quando viam o título, pensavam que era um tratado de anatomia e as obras de medicina não estavam proibidas. O erro durou pouco tempo”.

Décadas depois do lançamento, “As Veias Abertas da América Latina” reaparecia como arma de arremesso político. Em 2009, o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ofereceu a Barack Obama um exemplar, durante a V Cimeira das Américas. O ato foi visto como uma provocação por muitos. Questionado sobre o episódio, Eduardo Galeano foi tangente: “Nem Obama nem Chávez entenderiam hoje o texto”.

Muitos não entenderam a dica, mas em 2014 o autor explicaria melhor o que queria dizer. Na Segunda Bienal do Livro de Brasília desse ano, Galeano deixou um auditório atónito quando soltou que “não seria capaz de ler de novo” as suas “Veias”. “Cairia desmaiado”, acrescentou. E explicou: “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é aborrecidíssima. Tentou ser uma obra de economia política, mas eu não tinha a formação necessária. Não me arrependo de a ter escrito, mas é uma etapa que, para mim, está superada”. A discussão sobre se o escritor se referia ao estético, estilístico, à análise ou aos ideais ali plasmados ainda hoje persiste (direita e esquerda interpretam-no ao seu gosto), mas isso nem é importante, como também induziu Galeano na altura: “Na verdade, todos escrevemos um só livro, que vai mudando e se vai multiplicando à medida que a vida se vive e o escritor escreve. Para mim, ‘As veias’ foi um ponto de partida, não um porto de chegada.” 50 anos depois, esta viagem inicial de Eduardo Galeano é a obra mais referenciada e lida do autor, atual até à medula. A editora Siglo XXI vai lançar agora uma edição comemorativa.

Sangria contínua

Li a primeira vez a obra de Galeano em Luanda. O sistema sanguinário e criminoso que expunha não me era alheio. Bastava olhar à minha volta para reconhecer esquemas de depredação históricos. Ao longo dos capítulos, África e América Latina entrelaçam destinos e processos de saqueio, com um resultado comum à vista – terra queimada.

Há poucos meses, já no México, peguei no livro de novo. Vários lugares que Galeano percorreu para escrever “As veias” estão aqui e conheço-lhes o destino passados 50 anos. Zacatecas, San Luís Potosí e Guanajuato, cujas minas de prata engordaram a barriga de Espanha, são hoje terras varridas pelo narcotráfico e crime; Chiapas continua uma encruzilhada político-identitária por resolver, com índices de pobreza e exclusão extremos e onde a exploração dos recursos continua, ao estilo desses paradoxos que Galeano evidenciou. Os exemplos são vários mas há um descarado. É um negócio redondo, tipo 2+2=4: a região é dos lugares com mais recursos hídricos no México; sabendo disso, a Coca-Cola montou ali uma fábrica e apoderou-se de grande parte da água potável, 1,3 milhões de litros é o que extrai por dia. Num lugar onde uma garrafa de refrigerante é mais barata que a água, Chiapas tornou-se no lugar do mundo (do mundo!) onde mais se consome Coca-Cola, segundo as autoridades mexicanas. O resultado é uma epidemia brutal de diabetes e obesidade, que a multinacional diz que tenta mitigar com campanhas de sensibilização inócuas e hipócritas.

Este modelo é o mesmo que Galeano descreve n’”As Veias” e que se repete uma e outra vez na América Latina atual. No ano passado, o jornalista inglês Andy Robinson seguiu os passos do autor uruguaio pela Bolívia, México e Brasil. O conjunto de crónicas periodísticas foi publicado em “Ouro, petróleo e abacates. As novas veias abertas da América Latina”. Neste livro, Robinson atualiza a informação onde Eduardo Galeano se deteve, nos anos 70 do século XX. Substitui o velho algodão, prata e açúcar por novas matérias-primas que, segundo ele, explicam os últimos golpes de Estado na região, as violentas crises sociais e a destruição massiva de ecossistemas. A lista inclui agora produtos animais como a carne bovina e agrícolas como a soja ou o abacate que, em lugares como o México, é conhecido por “ouro verde” e virou negócio de narcos. A prata de antigamente deu agora lugar ao ouro, petróleo, coltan (columbita-tantalita) e ao lítio, cuja importância catapultou o assalto ao poder na Bolívia, no ano passado. Novos produtos, a lógica de sempre, agora com multinacionais a esconder, mais que nunca, a mão que embala o berço no jogo político da região.



Em entrevista à BBC, o jornalista inglês realçou, por outro lado, as tentativas dos “governos da esquerda da América Latina” de “nacionalizarem esses recursos e utilizarem os ingressos para redistribuir a renda”, resultando no que considera o “enorme mérito de tirar milhões da pobreza”. “No entanto”, reconhece, esses países “não conseguiram sair da armadilha da dependência da exportação de matérias-primas e, por isso mesmo, permitiram a sobrevalorização das suas divisas. Quando terminou o super ciclo de preços altos, cobraram-lhes a fatura”.

Na sua viagem, Andy Robinson constatou também que pouco mudou nas condições de vida de quem trabalha o campo ou extrai os metais da moda. “As suas condições de trabalho são duras, ma não tanto com o estado em que ficam as comunidades indígenas depois da desflorestação, o envenenamento com mercúrio e cianeto, o deslocamento forçado e o assassinato dos camponeses”, comentou na entrevista.

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