As três mortes de Marisela Escobedo

Esta é uma história de amor. De Rubi, morta pelo companheiro que não aceitou o fim da relação. De uma mãe, Marisela Escobedo, que deu a vida lutando por justiça, num confronto com polícias e políticos enterrados no lodo do narcotráfico. Uma história de mulheres abandonadas nas mãos dos monstros – os que empunham armas, os que fazem leis, os que ditam sentenças e percorrem os corredores do poder num México feminicida. Cúmplices engravatados com mãos manchadas de sangue.


Quantas vezes se morre em vida? Muitas, poucas, uma, o que diga o destino. Marisela Escobedo, sabe-se, morreu três vezes. Uma via-cruz terrível de pés doídos e de cabeça levantada.

O documentário da Netflix “As Três Mortes de Marisela Escobedo”, do realizador Carlos Pérez Osorio, conta uma história extraordinariamente dura, dessas que nos deixam em silêncio com olhos cravados no genérico final que passa lento, enquanto digerimos o murro no estômago. Expõe o pesadelo dos feminicídios no México, onde todos os dias 10 mulheres são mortas por razões de género, e da impunidade total, 97% de crimes sem se resolver segundo as estatísticas.

Esta é a história de uma mulher comum que durante dois anos enfrentou sozinha um sistema assassino. Marisela Escobedo é hoje um símbolo da luta feminista no México. Com punho firme, pintam o seu nome a violeta-resistência nas paredes das cidades em fúria.

A primeira morte: os ossos

Rubi tinha 13 anos quando conheceu Sergio Barraza. O jovem de 20 anos bateu um dia à porta da madeireira da família Frayre Escobedo, em Ciudad Juárez, fronteira norte do México. Pediu emprego, estava em dificuldades. Marisela Escobedo dirigia então o negócio e aceitou ajudá-lo.

Em pouco tempo, Rubi e Sergio começavam uma relação que lhes ditaria o destino. Foram viver juntos. Tiveram uma filha. Marisela “estava contra a relação”, ouve-se no documentário. “O que me deteve foi o medo de ser rejeitada pela minha filha por não a deixar estar com o homem que amava”. O tempo corria sem sobressaltos. “Aparentemente estava tudo bem”. Mas não estava.

Agosto de 2008. Com 16 anos, Rubi desaparece um dia sem deixar rasto. Um dos irmãos, Juan Manuel, confronta o companheiro da jovem. “Foi-se embora com outro gajo”, atira. No dia seguinte, também Sergio se esfuma com a filha bebé, sem avisar. O alerta soa forte. A angústia toma conta da família Escobedo. Marisela tenta convencer a polícia de Ciudad Juárez a iniciar uma operação de busca. Negligentes e com total indiferença, as autoridades repetem uma e outra vez que não há indícios de que alguma coisa tenha acontecido a Rubi. Mês e meio durou este braço de ferro.

Sem perder tempo, Marisela toma as investigações nas mãos. Com familiares e amigos, percorre dia e noite a que era, na altura, uma das cidades mais violentas do mundo. Entram em bares obscuros e prostíbulos onde jovens de 15 anos se prostituem. Distribuem panfletos, falam à imprensa. Mas nada acontece.

Vão até um dos bairros da periferia de Ciudad Juárez onde Sergio tinha vivido. Lugar sujo, perigoso, cinzento. Casas encavalitadas num morro, cobertas pelo pó fino castanho-claro do deserto do norte de Chihuahua. Oferecem uma recompensa por informações.


Um jovem da comunidade morde o isco e reúne-se com Marisela. “Entrou na carrinha com todo o medo do mundo e pediu que fossemos embora dali. A mandíbula tremia com os nervos”, relata a protagonista numa gravação reproduzida no documentário. O golpe foi duro. O informante revela que Sergio Barraza confessara a um grupo de amigos que tinha assassinado Rubi. Que a tinha queimado e atirado numa lixeira fora da cidade.

Com toda a dor do mundo, Marisela aponta armas a Sergio e toma a decisão que lhe marcaria o destino: “Não o vou deixar dormir em paz. Mesmo que ele me leve a vida eu vou encontrá-lo até que se faça justiça.” Sem apoio nem proteção das autoridades, retoma as buscas. Já não procura Rubi viva, mas um corpo carbonizado. Com a família, revolve a tal lixeira. Um lugar putrefacto nos arredores de Ciudad Juárez onde se amontoam animais mortos e todo o tipo de desperdícios em decomposição. Não encontram nada.

Marisela sabe que tem que encurralar Sergio se quiser encontrar os restos mortais da filha. Muda de estratégia. Descobre que ele escapou com a bebé para Fresnillo, uma cidade a mais de mil quilómetros a sul de Ciudad Juárez. Numa jogada de mestre, aproveita que as autoridades insistem que Rubi está viva e acusa Sergio de levar a filha do casal para outra cidade sem o consentimento da mãe.

O argumento convence e a polícia por fim atua. Em Fresnillo, prendem o jovem. Ao ser detido, solta: “Sei que vêm por causa da Rubi, mas eu não fui, eu não a matei”. A confissão inadvertida surpreendeu os agentes ministeriais. Em pouco tempo, Sergio acaba por admitir o assassinato. Mais tarde soube-se que Rubi queria terminar com a relação e voltar para casa da mãe. Foi uma sentença de morte. Detonador típico de um feminicídio.


As buscas do corpo de Rubi recomeçaram, agora com a polícia no terreno. Marisela acompanhou cada passo. “Foi duro ver a minha mãe nesse lugar”, relembra Juan Manuel. “Encontrámos um ossito da Rubi, da parte da coluna… um ossito apenas”.

A segunda morte: a sentença

Em “As três mortes de Marisela Escobedo” veem-se os dias felizes, anos antes da tragédia. As viagens à praia, o dia-a-dia na casa de Ciudad Juárez, as festas e o casamento de Juan Manuel. Marisela adorava dançar. Nos vídeos familiares ela sorri, solta os discursos da praxe nas festas, é anfitriã de mão-cheia, “toda corazón” como qualquer matriarca mexicana. Com 50 anos, era ao mesmo tempo enfermeira e empresária, uma “luchona”, como por aqui se chama às mulheres de garra. A morte de Rubi, a mais nova de cinco filhos, alterou-lhe o semblante. “Tinha um olhar vazio (…), o que a mantinha com vida era que se fizesse justiça”, descreve Juan Manuel.

Com Sergio preso e o julgamento marcado, Marisela decide chamar a atenção para o feminicídio de Rubi. Durante uma semana, dia após dia, marcha por Ciudad Juárez. Em passo apressado e decidido, encabeça a marcha de familiares e amigos. Contra o peito, aperta uma fotografia de Rubi numa moldura dourada. A neta acompanha a marcha dentro de um carrinho de bebé. Um cartaz cobre a cara da pequena: “Onde está a minha mamã? Pena máxima!”.


 
A 26 de abril de 2010 começa o julgamento. Durante horas, agentes de polícia, peritos e até o padrasto de Sergio confirmam a responsabilidade do jovem pela morte de Rubi. Marisela olha o homicida da filha nos olhos: “Sabes, Sergio, eu não te perdoo. Que te perdoe Deus, se é que algum dia te vais arrepender.” O acusado toma a palavra e balbucia: “Peço-te perdão, Marisela, porque sei que foi um dano muito grande e que... bom, não tenho palavras, é tudo…”

Com a confissão de Sergio e as provas apresentadas, a confiança na condenação era absoluta. Depois de uma pausa, uma juíza prepara-se para ler a sentença. Confiante, a sala sustém a respiração. Ninguém está preparado para o que aí vem: “O tribunal absolve por unanimidade Sergio Rafael Barrazas Bocanegra, como autor....” A frase ficou a meio. Um grito lancinante, agudo soltou-se no tribunal. Em choque, Marisela levanta-se, avança para a juíza, atira para o chão uns papéis, grita, grita, chora, grita forte. A polícia tenta conter a família de Rubi, que se lança sobre Sergio. Marisela perde forças e cai, de joelhos, num choro aflitivo. Sai do tribunal prostrada, em pranto convulso, amparada por mulheres que, também elas, choram.


As imagens espalharam-se por um México incrédulo. Uma vez mais a Justiça do país estava na lama. A impunidade – esse fantasma tão real – humilhava novamente as vítimas. À imprensa de todo o país, os juízes tentavam argumentar que apenas tinham cumprido a lei, que o processo tinha sido mal instaurado pelo Ministério Público. Eram a cara de um Estado que falhava em proteger os seus.

Ao choque seguiu-se a fúria. Mais determinada que nunca, Marisela retoma fôlego e um dia depois do julgamento avança de novo pelas ruas da cidade, agora com a cara pintada com lágrimas e lábios borratados a vermelho. “[O julgamento] foi um teatro, os palhaços fomos nós e quem se riu foram eles”, comenta a um jornalista. “Ontem, esses juízes voltaram a assassinar a Rubi”. Dias mais tarde marcha novamente, agora nua, apenas coberta com a fotografia da filha. “Deixaram-me nua, sem nenhuma garantia, sem nenhum direito”. A sentença acabaria por ser revogada e Sergio acusado da morte de Rubi. Mas nessa altura já tinha desaparecido de Ciudad Juárez. Estava prófugo.

O tempo passava e as investigações apodreciam na Procuradoria de Justiça. Marisela decide capturar ela mesma o assassino da filha. Percorre todo o país, de Ciudad Juárez até à Cidade do México. Procura-o nos bares, nas discotecas, nos bairros de cada cidade e povoado. A marcha faz ruido e entra na agenda da imprensa nacional. Insistente, Marisela obriga os Procuradores de Justiça estatais a recebê-la. Pede uma audiência com o Presidente da República de então, Felipe Calderón, que nega recebê-la.

Nesta longa viagem, a caravana detém-se uma vez mais em Fresnillo, cidade onde Sergio tinha sido preso anteriormente. Descobrem que aí está escondido e encontram a casa onde agora vive. Marisela avisa as autoridades. Numa ação mal planeada e violenta, a polícia invade o apartamento. Cercado, o homicida de Rubi reage e dispara contra os agentes. Na confusão, foge por uma janela e desaparece. Outra vez.

A terceira morte: a bala

“Perdi o medo a tudo. Perdi o medo à morte, que é o pior que me podia passar. Enfrentei as autoridades, governadores, quem me apareceu à frente. E quero que a minha filha, onde quer que esteja, saiba que a amo e que não vou deixar de lutar até que se lhe faça justiça.”

Todos os dias Marisela lutava contra um interior desfeito. “A minha mãe sentava-se a ler o processo de Rubi, via os ossos, lia a mesma coisa uma e outra vez”, conta o filho Juan Manuel. “Tinha esses momentos em que aparecia forte diante de todos, mas quando já ninguém a via, ia-se abaixo. Não havia palavras, nada que se pudesse dizer, apenas estar aí ao lado dela.”

Mas reerguia-se uma e outra vez. Sem esperar já nada do Estado, decide ir novamente atrás de Sergio. Não foi difícil encontrá-lo, continuava em Fresnillo, de onde nunca tinha saído. Contam-lhe que o assassino de Rubi fazia agora parte de um dos grupos de narcotraficantes mais sanguinários e temidos no México, “Los Zetas”.

Marisela decide enfrentar o risco e aluga um apartamento de onde pode vigiar à distância os movimentos na casa de Sergio. Com o filho Juan Manuel, monta um sistema de vigilância dia e noite. De madrugada, escondem-se num carro e esperam ver chegar o homem que acabou com a paz da família. “Como nos filmes”, resume Juan. Durante meses nada acontece. Até que numa noite, já tarde, tudo se precipita. “Era de madrugada e estávamos a dar uma volta de carro pelo bairro quando, de repente, aparece-nos de frente uma carrinha e acende os máximos. Era Sergio”.


Estavam em perigo. O companheiro de Rubi fazia-se agora chamar “Comandante Bambino”, nome de guerra. Um informante revela a Marisela que os narcos controlam a corporação da polícia de Fresnillo e que os agentes nada podem fazer sem autorização das cabeças do grupo criminoso. Sem qualquer proteção e desmascarados, Marisela e o filho saem às pressas da cidade.

Vão direto à capital de Chihuahua para fazer peito ao poder político e judicial. A 5 de dezembro de 2010, montam um plantão no jardim à frente do Palácio do Governo do Estado. As ameaças de Sergio são constantes, revela Marisela à imprensa. “Esse homem continua aqui no México e isto está a ponto de converter-se num jogo de gato e do rato em que sou eu quem se tem de esconder.” E solta então uma frase que ficou célebre: “Se ele me quiser matar, que me assassine aqui neste lugar em frente ao palácio para vergonha dos políticos.”

A pressão parece surtir efeito. O governador Cesar Duarte instrui o Procurador de Justiça do Estado a receber Marisela. Numa reunião, a mãe de Rubi conta-lhe todos os pormenores das investigações que ela e a família fizeram nos últimos anos. Prometem-lhe justiça. “Espero que o senhor fiscal tenha palavra, mas vou esperar por uma resposta aqui na praça”.


E assim foi, até ao frio 16 de dezembro de 2010. Nessa noite, por volta das oito horas, Marisela estava a ponto de regressar a casa. Começava a retirar os cartazes e as velas que há mais de uma semana ocupavam um cantinho da praça no centro da cidade de Chihuahua. As câmaras de vigilância do Palácio Estatal gravaram, em silêncio, o desfecho da tragédia: um carro branco aproxima-se, para na berma do jardim, um homem sai e corre atrás de Marisela, ela foge, atravessa a rua, corre um, dois metros, o homem persegue-a, empunha uma pistola, aponta-lhe à cabeça, dispara. Marisela cai. O corpo estendido, imóvel, cara contra o chão numa poça de sangue. Em frente às portas do Palácio do Governo por onde se passeiam os que a prometeram proteger.

Marisela está morta.


Epitáfio

Marisela dizia aos seus que esperava que a morte de Rubi não fosse em vão e que fosse o último feminicídio no México. Mas não foi. Ela seria a vítima seguinte. Em Chihuahua, a indignação foi geral. Houve manifestações, protestos. Durante dias a fio, ativistas rodearam o Palácio do Governo com velas.

Para a família Frayre Escobedo, o pesadelo ainda não acabara. Um dia depois do funeral de Marisela, um grupo de narcos incendeia, sob ordens de Sergio Barraza, a madeireira da família – ironicamente o lugar onde ele conheceu Rubi e onde a tragédia se começou a desenhar dois anos antes. Matam também um cunhado de Marisela. Encontraram-no num descampado com um saco na cabeça e arame farpado à volta do pescoço.


Os narcos chegam também à casa de Juan Manuel. O filho da ativista teve sorte, não estava nesse momento, mas a mensagem era evidente: ele seria o próximo da lista. Sem hesitar, abandona tudo nesse momento e cruza a fronteira. Pede asilo político em El Paso, Texas, onde vive até hoje. “Quando começas a expor as falhas do governo, do sistema, os nexos entre o narco e o governo, então a tua vida está em perigo”, diz no documentário.

Pressionados por todos os lados, o governador de Chihuahua e Procuradoria de Justiça encontraram rapidamente o que diziam ser o autor material do assassinato de Marisela. O homem apelidava-se “Wicked”. Em nada se parecia ao assassino que as testemunhas viram disparar sobre Marisela e a quem deram nome: Andy Barraza, irmão de Sergio. Em “As três mortes de Marisela Escobedo”, Andy recusa a autoria do crime. Mas não tem dúvidas que foi o “Comandante Bambino” quem deu a ordem para matar Marisela.

“Wicked” foi encontrado morto na prisão algum tempo depois. Num primeiro momento, as autoridades de Chihuahua disseram que tinha sofrido um ataque cardíaco fulminante. Quando a família do detido exigiu uma autópsia, a história deu um giro radical: o alegado homicida de Marisela foi assassinado. Desorientada, a Procuradoria deu o dito por não dito e confirmou o homicídio às mãos de um companheiro de cela. Ninguém acreditou na nova versão. Hoje sabe-se que, pouco antes de ser assassinado, “Wicked” confessou aos advogados que “alguém” o tinha obrigado a assumir a culpa da morte de Marisela, sob o risco de matarem a sua família. Já não aguentava mais a pressão e queria acabar com a farsa. Foi assassinado antes de poder contar a sua verdade.


Sergio Barraza também não teve melhor sorte. Morreu dois anos depois, em 2012, num confronto entre “Los Zetas” e os militares. Com a morte do alegado autor da morte de Marisela e do assassino de Rubi, os crimes foram arquivados. Mas ainda hoje há quem lute por elas. Em 2019, o Estado mexicano foi acusado na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos de ser responsável pelos dois crimes. O processo continua aberto.

A história trágica de Rubi e Marisela transformou-as em ícones num México habituado à violência. Os seus nomes ecoam em versões de “Canção sem Medo”, de Vivir Quintanar, um hino dos movimentos feministas latino-americanos que exigem o fim da impunidade. Com voz forte, cumprem nas ruas o apelo de Marisela: “Saiam de dentro das suas quatro paredes. Se uma porta se fecha hoje, amanhã outra se abre. E procurem justiça até ao último canto da terra. Para que as nossas filhas possam viver em liberdade, para que não sejam vítimas de violência, muito menos de homicídios.“ Sem medo.

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