Os enigmas das monjas

No século XVII, freiras portuguesas amantes da literatura criaram uma relação especial com uma religiosa erudita do México colonial, Sor Juana Inés de la Cruz. Com poesia e enigmas de amor, defenderam o direito das mulheres ao conhecimento. Os escritos das religiosas ganharam pó por 300 anos na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Até que um investigador tropeçou nas folhas soltas.


Esta é a história de uma teia de solidariedade intelectual entre mulheres do século XVII de lados opostos do mundo, em busca de saber. Religiosas dispostas a dar um murro na mesa dos poderes do clero e dos homens. Burlonas, ácidas, rebeldes. Letradas e incómodas.

No centro da trama, “Sor Juana Inés de la Cruz” - Sóror Joana Inês da Cruz. A “Fénix” ou “Décima Musa”, como a conhecem no seu México natal, onde dá a cara nas velhas notas verdes de duzentos pesos.

Sor Juana (vamos chamá-la pelo nome na língua original) é figura maior da literatura em espanhol. Em pleno século XVII, esta mulher que escolheu o convento para fugir ao matrimónio e dedicar-se sem amarras ao conhecimento, era autoridade intelectual na Nova Espanha, nome colonial do México. Poetisa, escritora, ensaísta, teóloga, música e mística, a obra de Sor Juana é vasta.

Contam as crónicas que, na cela conventual onde vivia, se reuniam artistas, escritores, intelectuais e cientistas. Para a época, a sua erudição era escandalosa. Aos 17 anos, um conselho de 40 sábios submeteu-a a um exame para avaliar se a sua capacidade intelectual era mundana ou divina. Respondeu a todas as perguntas sem hesitar. Não se soube o veredito.

A independência de Sor Juana e a contestação ao clero e às leis dos homens (homens mesmo, como macho) coloca-a hoje num pedestal feminista. Tipo Frida versão setecentista. Não são poucos os mexicanos que recitam de cor uma das suas frases mais famosas: “Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis.” Em tradução livre, “Homens teimosos que acusam a mulher sem razão, sem ver que são o motivo do mesmo que culpam”.

Se a sabedoria e eloquência das suas aparições públicas “hipnotizavam” tudo e todos, segundo os relatos da época, a solidão da sua cela era ainda mais cativante. Em silêncio, durante anos a fio, Sor Juana criou uma rede de solidariedade intelectual com outras mulheres como ela – intelectuais, fraturantes, de pensamento livre. Entre elas estavam oito intrépidas freiras portuguesas.

A Casa do Prazer

Adivinhai:

Qual é a deidade
Que com cega ambição,
Cativando a razão,
Toda se faz liberdade?

E esta também:

Qual pode ser o cuidado
Que, livremente imperioso,
Se faz a si mesmo ditoso
E a si mesmo desditoso?

Em pleno século XVII, Sor Juana insurgia-se contra o clero e exigia o direito das mulheres ao conhecimento.Quando, em 1968, o investigador Enrique Martinez López tropeçou nestas adivinhas em manuscritos escondidos na Biblioteca Nacional, em Lisboa, nem pensou nas possíveis respostas ali ocultas (sabedoria e desprezo, talvez). Os olhos cravaram-se de imediato numa dedicatória inesperada: “Inéditos Enigmas oferecidos à discreta inteligência da soberana Assembleia da Casa do Prazer, por sua mais rendida e aficionada Soror Juana Inês de la Cruz.” Data: 1695. López soube que tinha uma relíquia nas mãos.

Os tais manuscritos com cheiro a antigo continham 20 poemas-adivinhas, conhecidos por “enigmas”, um poema-romance de 24 versos e um conselho desconcertante: “Divirtam-se, nem que seja por um momento.”. O livro escancarava a até então desconhecida cumplicidade intelectual entre Sor Juana e um grupo de freiras portuguesas de conventos de Lisboa e outros pontos do país.


Em “Sor Juana Inês de la Cruz em Portugal: uma homenagem desconhecida e versos inéditos”, Enrique Martinez López teoriza: “As freiras portuguesas (…) estariam seguramente a par da defesa de Sor Juana do direito da mulher à intelectualidade, por isso, como mostra de apoio e sororidade feminina, pediram-lhe que colaborasse com a sua poesia no grupo literário constituído por elas, cada uma a partir do seu convento, chamado Casa do Prazer”. A ponte entre os dois lados do Atlântico, comenta o investigador, era “a Duquesa de Aveiro” e Maria Luísa Manrique de Lara e Gonzaga, uma condessa espanhola que tinha sido vice-rainha da Nova Espanha. As duas eram admiradoras e amigas próximas não só de Sor Juana mas também das Irmãs portuguesas.

Encantadas com a escrita da monja rebelde da Nova Espanha que falava de amor nas suas adivinhas, as freiras lusas reuniram então num livrinho os enigmas e incluíram prosas e poemas em que elogiavam as “claridades obscuras” de Sor Juana. A admiração não era à toa. Três destas religiosas (Soror Feliciana Maria de Milão, Soror Maria do Céu e Soror Maria das Saudades) eram elas próprias figuras destacadas entre os intelectuais portugueses de então e donas de espíritos vivazes e aguçados. Qualquer coincidência com o carácter livre de Sor Juana “não é coincidência”, sublinha Enrique Martinez López.

Sor Juana, Padre António Vieira e o cisma

Sor Juana é considerada a última grande poetisa dos anos de ouro da literatura em espanhol.Em Portugal, a fama de Sor Juana precedeu os Enigmas da “Casa do Prazer”. Em 1690, a religiosa escreveu a “Carta Atenagórica”, um ensaio teológico intrincado que criticava duramente o “Sermão de Mandato” do intocável Padre António Vieira. A crítica ao jesuíta português caiu como uma bomba no seio da Igreja patriarca e atirou a intelectual para o olho do furacão em Portugal e outros países.

Popular e polémico, o texto de Sor Juana foi publicado quatro vezes entre 1690 e 1693. A Inquisição começou a tê-la debaixo de olho. Altas figuras do clero da Nova Espanha aconselharam-na a deixar a reflexão teológica para “os homens” e a dedicar-se à oração. A “Fénix” aguentou as críticas e ressurgiu com uma resposta dura, repleta de “ardentes declarações feministas” e onde reivindica o direito das mulheres ao conhecimento. Mas o caminho estava traçado. Quem estuda a fundo a vida de Sor Juana coincide que a crítica ao Padre António Vieira marcou o início de um forçado e irreversível apagão intelectual.


Desgastada e atacada por todos os lados, a Décima Musa desfez-se da sua biblioteca de mais de 300 livros. Deixou de escrever. Vendeu os instrumentos musicais, os aparelhos científicos e doou o dinheiro aos pobres. Mergulhou numa austeridade profunda. Em 1695, morre no Convento de São Jerónimo, vítima de uma epidemia de cólera que arrasou a Cidade do México.

Séculos depois, o esquecido livro “Enigmas” acabou por revelar-se como a ponta de um novelo maior. Depois da descoberta da obra, em 1968, manuscritos encontrados em outros países expandiram a dimensão de Sor Juana. Nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, é considerada um dos pilares dos primeiros movimentos feministas. No seu México natal, depois de anos e anos de detração por intelectuais misóginos, o século XX resgatou-a. A esses “hombres necios”, do lado de lá do esquecimento manda a sua achega: “Triunfante quero ver quem me mata; e mato quem me quer ver triunfante”.

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