O Caminho da Anaconda
Conta a lenda: no começo da humanidade, as anacondas saíram do mar. Subiram a contracorrente o rio Amazonas, espalharam-se pelos seus afluentes. Por onde passavam criavam vida. Com o tempo, chegaram à fonte de todos os rios, a cordilheira dos Andes. Desde tempos sem memória, esta rota é conhecida pelos povos indígenas da Amazónia como o “Caminho da Anaconda”.
O mapa desta região derruba as fronteiras dos oitos países que atravessa - Perú, Equador, Brasil, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Colômbia. São 265 milhões de hectares entre os Andes e o Atlântico, bordeando o norte do Rio Amazonas. Neste lugar as ameaças não cessam. Os incêndios incontroláveis dos últimos meses, que agora ressurgem com força renovada e incentivo político criminoso, são o perigo mais recente para a Amazónia. Porém, as árvores tumbadas pelas madeireiras, as minas a céu aberto, as barragens, os pastos de gado e poços de petróleo cravado na terra de areia já há muito que destroem as veias desta terra sagrada.
As agressões ao ambiente e aos povos indígenas ameaçam a continuidade territorial e cultural deste corredor ecológico e põem em causa a sobrevivência de todos. Este é um caminho de vida, dele depende a água de toda América do Sul. No trilho de anacondas o ciclo não tem fim. Os rios que nascem nos Andes ganham corpo na Amazónia e desaguam no Atlântico, onde 200 biliões de toneladas de água se elevam depois, espíritos ao alto, e começam o caminho de regresso à grande cordilheira. Pelo caminho, são captados e de novo exalados por milhões de árvores amazónicas. Os ventos levam-nos então, passo a passo, contra os muros de pedra dos Andes, onde se precipitam de novo. São os rios voadores. Por vezes invisíveis, por vezes lençóis de névoa nas vastas extensões da Amazónia. Um longo véu de tule que se desprende da terra, acaricia os picos de montanhas e paira sobre os rios negros, azuis turquesa ou amarelos-lama.
Manter este ciclo de vida virou projeto de vida ou morte. Os indígenas da região – quase 400 povos no total – apoiaram-se em organizações de defesa do ambiente, com destaque para a Fundação Gaia Amazonas do antropólogo Martin von Hildebrand, e defendem agora o seu caminho ancestral. A luta pelo ambiente e território vem de braço dado com a salvaguarda dos seus direitos coletivos, da sua cultura e da sacralidade dos bosques onde habitam os seus espíritos protetores.
Cartografia espiritual
Mais que mapas com linhas e coordenadas, o Caminho da Anaconda segue uma “cartografia espiritual”, defende Rincón Ipuchima. No artigo “A última loucura para salvar a Amazónia”, publicado no jornal colombiano El Espectador, o membro da Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazónica (Coica, na sigla em espanhol) explica: “Há algo a que nós, os indígenas, chamamos ‘o caminho do pensamento’. Cada comunidade tem um líder que diz: por lei de origem, devo partir da maloca [casa comunitária] em direção ao monte, ir depois ao rio e regressar pelo mesmo caminho, para percorrer espiritualmente esses pontos e sanar o mundo. Cada maloquero faz isto no seu pedaço de terra e quando dás conta, tens uma ligação, um caminho do pensamento tecido entre os indígenas amazónicos”.
É esta interconexão – física e espiritual –, que o projeto Caminho da Anaconda quer garantir. Quase 70% do corredor já são reservas naturais ou territórios indígenas. Falta agora conectar os espaços vazios e sem proteção para garantir a integridade deste território do tamanho da face visível da lua.
As pequenas vitórias dos últimos anos dão impulso a este sonho também conhecido por Corredor AAA – Andes, Amazónia, Atlântico. No documentário “O Trilho da Anaconda”, da Caracol TV, o antropólogo Wade Davis relata o confronto dos Makuna, povo da Amazónia colombiana, com um titã de pés de barro. “Para os Makuna, o ouro é a essência do sol. Está debaixo da terra para guiar os xamanes quando partem em viagens subterrâneas para equilibrar as forças do mundo. A certa altura, chegou às terras dos Makuna uma multinacional canadiana para extrair esse ouro. Prometeu às comunidades serviços de saúde e de educação, o truque de sempre para tentar convencer as populações que têm acesso limitado a serviços básicos.” O embate foi imediato e o projeto acabou por não sair do papel. Os canadienses não contaram com a intransigência dos Makuna, firmes na convicção de que são, por natureza, os guardiões do ouro que ilumina os seus guias espirituais. Depois desta luta, as terras dos Makuna foram classificadas como território indígena e, como tal, intocáveis para “os de fora”.
Os espíritos agradeceram com abundância, conta o documentário “O Trilho da Anaconda”. É que, dizem os lideres deste povo amazónico, se a Natureza dá a vida, a humanidade é quem harmoniza as energias do meio natural. Terra e homem fundem-se e reconhecem-se. As plantas, por exemplo, são consideradas pessoas numa outra dimensão de existência. Em algumas aldeias amazónicas, as mulheres são as únicas que semeiam e colhem os frutos-filhos-da-terra, elas que são ventre de vida. É também nas hortas comunitárias que homens e mulheres se escondem para ter sexo. A terra-mãe abençoa-os com a energia vital da fertilidade.
Com a força das suas culturas, os líderes do projeto AAA batem às portas de governos, organizações, instituições, chegaram até ao Vaticano. No entanto, os inquisidores parecem ter-se mudado da Santa Sé para cadeirões presidenciais na América do Sul. E já condenaram a Amazónia à tortura na fogueira. Com a cabeça a prémio, no mais absoluto silêncio da imensidão verde, a selva suspende a respiração. Para soltar então um suspiro de mil rios voadores que continuam a dar vida, esperança e que alimentam a luta.
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