O Bairro do Passa Sabe


É um lugar emblemático para os cabo-verdianos que vivem em Luanda. Nele recomeçaram a vida antigos contratados das roças e fazendas de São Tomé e Príncipe e Angola, vaguearam aventureiros clandestinos, fixaram-se colonos e emigrantes crioulos em busca de uma vida melhor nas terras austrais. Nos becos e esquinas do bairro do Prenda, Luanda tornou-se também ela cabo-verdiana.


Estamos em 1974. A comunidade crioula do Prenda fervilha de vida. Um número não determinado (mas elevado) de cabo-verdianos vindos das roças de São Tomé e Príncipe e Angola e das ilhas do Fogo, São Vicente e Santo Antão, sobretudo, transformam o bairro num centro nevrálgico de comércio informal em Luanda.

Por entre os becos e ruelas do “musseque” (nome dado aos bairros pobres sem condições de habitabilidade) onde também habitam angolanos, os boémios e músicos cabo-verdianos encontram terreno fértil para os seus devaneios. As soleiras das portas da “Rua do Passa Sabe” tornam-se palcos privilegiados das tocatinas de fim de tarde. Com os pés assentes nesse pedacinho do espaço abstracto que é a “terra longi”, e com guitarras e violinos nas mãos, os amantes da paródia cantam e relembram as ilhas que ficam para lá do horizonte do mar da Samba, que se avista do alto do morro do Prenda.



A cultura cabo-verdiana celebra-se a um ritmo frenético. Tocatinas, bailes e festas regados a cerveja e capurroto (espécie de grogue angolano) estendem-se madrugadas fora no “Salão Biúca” e no “Clube”. O Biúca torna-se, inclusivamente, num ponto de passagem obrigatório para Bana e Luís Morais, aquando das suas viagens a Luanda. A fazer as honras da casa está João Martins César, homem de Santo Antão criado no Mindelo que em 1950 chegou ao país para trabalhar oito anos seguidos na Companhia Agrícola de Angola, na província do Cuanza-Sul.

Neste limbo de música e paródia (romântico, porque descrito por quem ainda hoje nele vive) aproximam-se as conturbações que culminarão na independência de Angola e na guerra civil. A partir de 1975 a comunidade começa-se a desintegrar, reduzindo-se a metade, segundo cálculos mentais e afectados de quem ainda hoje lá permanece. Muitos viajam para os Estados Unidos e Portugal, alguns regressam a Cabo Verde. “Depois de 1974 o Prenda nunca mais foi igual”, recorda o antigo dono do Salão Biúca. O pátio onde se destilou tanta alma crioula não o deixa mentir: é um espaço degradado, forrado a cimento cru, vazio e sem calor.



As caras do Prenda
À passagem do túnel da avenida da Revolução de Outubro (antiga Avenida Lisboa), na direcção do aeroporto, uma pequena entrada à direita alonga-se numa comprido e estreito beco atravancado de bancas e toldos: é o famoso mercado de Prenda. Por entre roupas, sapatos e todo o tipo de bugigangas impera o “papiar” crioulo das comerciantes, a maioria mulheres da ilha do Fogo. Nha Ana, natural de São Lourenço, é uma delas. Chegou ao Prenda em 1969, depois de um “inferno de cinco anos na roça Santa Catarina”, em São Tomé e Príncipe. Ao viajar para Angola não só reconquistou a “liberdade” que perdeu “nos tempos de escravidão”, como também conseguiu montar o seu negócio de “bolinhos e roupas”, que ainda hoje prospera. Na zona do bairro havia, então, “umas quantas casas de pau-a-pique”.


Ninguém sabe ao certo em que data o primeiro grupo de cabo-verdianos fixou-se na zona que hoje é o Prenda. No entanto, tudo leva a crer que tenha sido na década de 40, altura em que chegou a Angola a primeira vaga de contratados crioulos. O certo é que já em 1950, ano em que Martinho dos Santos, natural de São Vicente chegou a Luanda, “já havia algumas pessoas a viver naquela área.”, diz.

A explosão urbana do Prenda crioulo decorreu lentamente, sem estrondos e pela calada da noite, conta Nhô Olímpio, um velho habitante do Prenda, natural da ilha do Fogo. “As casas eram construídas durante a madrugada. Sempre que acordávamos, de manhã, já havia mais uma ou duas habitações de madeira totalmente montadas”, recorda. Pouco a pouco, um Prenda construído à imagem e semelhança do arquipélago cabo-verdiano começou a afirmar-se como reduto dos crioulos da cidade. “O bairro estava dividido por zonas que correspondiam a várias ilhas. Mas na hora de nos unirmos deixava de haver São Vicente, Fogo ou Santo Antão, éramos Cabo Verde em peso a defendermos o que achávamos correcto”, conta João Martins César, dono do antigo Salão Biúca. Este espírito, diz, “ainda se mantém hoje em dia, de certa forma”.


Elogio da saudade

O Prenda crioulo transpira saudade por todos os poros. Afinal de contas, como diz Nha Ana, “é esse sentimento que mantém quem está longe ligado à terra onde nasceu”. Nesta ligação directa, não raras vezes se ouve o desfiar em praça pública de autênticos rosários de mães, primos, tios, sobrinhos e parentes que por “lá” ficaram; de cutelos, ribeiras e achadas que não se esquecem; dos paladares do café do Fogo, das bolachas de São Vicente ou do feijão congo cabo-verdiano que, segundo algumas opiniões, “é muito mais tenrinho do que o angolano”.


Mas este rodopio de nostalgia tão típico dos cabo-verdianos, para além de apanhar os que nasceram nas ilhas e aí desejam voltar para passar o resto dos seus dias, envolve também quem nunca pôs os pés em terra crioula mas que a têm no sangue. Olhado de longe, Cabo Verde agiganta-se no imaginário de alguns jovens que se habituaram desde crianças a ouvir vezes sem conta as histórias, as maravilhas e as façanhas passadas em terras cabo-verdianas. Se por um lado grande parte das segunda e terceira gerações já não se identifique minimamente com o país dos progenitores, outros há que se agarram com unhas e dentes à raiz cultural das ilhas e não a trocam por nada.



É o caso de Alcides Tavares. Nascido em Luanda há 23 anos, este filho de cabo-verdianos recusa-se a adquirir a nacionalidade angolana. Justificação: “o orgulho enorme” que sente pela “tradição” de Cabo Verde, país onde curiosamente nunca pôs os pés. “Todos os meus documentos são cabo-verdianos” revela prontamente num crioulo perfeito. Enquanto afirma a sua identidade, na pequena praça de terra batida em frente à sua casa as colunas debitam “Segunda”, de Zeca Campos. A batida cadenciada do funaná lento que virou moda nas pistas de dança da capital angolana espalha-se pelos becos do bairro em repetição contínua. Naquele momento, o Prenda reencontra-se com os sons desse arquipélago pequenino e distante que não conhece pessoalmente, mas que sempre lhe deu vigor e vida.

Reportagem publicada na revista do jornal A Semana (Cabo Verde), em 2009
Fotos de Germano Liberato 



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