“Os vinte estranhos negros”

Nova Iorque já falou kikongo e kimbundu. Manhattan já foi terreiro de batuque. Os primeiros africanos a chegar às colónias que formaram os Estados Unidos da América eram escravos dos reinos do Congo e do Dongo. A história começou em 1619. Com um ataque de piratas.


A linha do Equador ficara para trás. Vindo de Luanda, o São João Bautista navegava as águas do trópico norte. No porão, escravos capturados pelos portugueses nos reinos do Congo e do Dongo. Destino final: Porto de Veracruz, Vice-Reino da Nova Espanha, o México actual. Os dias de viagem parecem intermináveis. Onda vai, onda vem…. onda vai, onda vem…

(Cristalizamos o momento. Deixemos o barco navegar nessa lentidão de mares lá atrás, no tempo.)

Soyo, 2013. Joe Mozingo palmilha lodaçais e canais da boca do rio Zaire. O jornalista norte-americano do diário Los Angeles Times procura, desorientado, o antigo porto negreiro que ali existia.
- “Onde porto?”, pergunta o surfista californiano no seu português básico a uns putos.
- “Aqui”, apontam.
Joe fica confuso. “O porto não pode ser aqui, pensei; nenhum navio pode chegar a este lugar”, relata em “Indo para casa: Angola”, publicado na revista National Geographic. A água dá-lhe pelos joelhos. Não há rasto das estruturas do lugar de partida de tantos escravos para “o outro lado”. 

Atordoado pelos mosquitos, Joe pisa firme as margens enlameadas de onde saiu, numa data perdida do século XVII, um “homem negro” chamado Mozingo. Um nobre do Reino do Congo, segundo alguns historiadores, que chegou em 1644 a Jamestown, actual estado norte-americano de Virginia, onde iniciou a linhagem paterna de Joe. O jornalista reclui-se, pensativo, numa história que começou exactamente em 1619, com a viagem atribulada do São João Bautista.

O assalto dos piratas

O São João Bautista prossegue, então, a sua viagem pelos mares do Vice-Reino da Nova Espanha. “Enquanto passavam por Campeche, na costa de Yucatán [México]”, avistaram as velas dos navios piratas White Lion, comandado por John Colyn Jope, e The Treasure, sob ordens de Daniel Elfrith. Recriação a quatro mãos dos investigadores norte-americanos Linda Heywood e John Thornton, no livro “Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585 – 1660”.


Sem perder tempo, os corsários do White Lion, a serviço de Inglaterra, tomaram de assalto o São João Bautista. Prenderam o capitão Manuel Mendes da Cunha e roubaram “entre 50 e 60 escravos”, transferindo alguns deles para o The Treasure, que viajava com a bandeira do Duque de Sabóia. Em pleno Golfo do México, o capitão John Colyn apontou o leme para nordeste, rumo ao porto de Point Comfort, na nova colónia inglesa de Virgínia, onde chega numa data não determinada desse 1619. Capturados no Congo e no Dongo, no que hoje é Angola, esses escravos do São João Bautista levados pelo White Lion ficaram conhecidos pelos “vinte estranhos negros”. São “os fundadores da presença africana na América Inglesa”, relatam os historiadores norte-americanos.

A este grupo juntar-se-ia, quinze anos depois, o antepassado bacongo de Joe Mozingo. Nesse fim de tarde do Soyo, o descendente norte-americano da linhagem real do Congo mergulha os pés brancos nas águas do Zaire, onde se diluem as suas (improváveis) raízes e sangue.

A Geração dos Alvarás

Joe e o navio negreiro São João Bautista estão ligados por um cordão umbilical ancestral. No século XVII, “praticamente todos os africanos que trabalhavam nas novas colónias dos ingleses e holandeses nas Américas eram de Angola”, comentam Linda Heywood e John Thornton. Soyo e Mpinda eram os principais portos de embarque.

A maior parte destes primeiros escravos chegados aos actuais Estados Unidos da América (EUA), a quem os historiadores chamam de “Geração dos Alvarás”, participavam em tarefas domésticas e na criação de gado. “Falavam apenas kimbundu ou kikongo, e muitos uma versão crioulizada do português”.


Ao mesmo tempo, a maioria deles observava rigorosamente os sacramentos da Igreja Católica. Fé imposta que criou um problema dos grandes na consciência dos colonos, para quem a lei e os costumes defendiam que “um cristão não podia ter outro cristão como escravo”, aponta a obra “Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585 – 1660”.  “Talvez por essa razão”, sugerem os autores, “os primeiros amos coloniais tinham uma propensão fora de comum para garantir a alforria aos Africanos”. Como exemplo, sublinha o historiador Edmundo Morgan, em 1668 em Northampton, Virginia, cerca de 30% dos escravos já tinham alcançado a liberdade. “Foi um momento único na História da escravatura na América do Norte” que não se voltaria a repetir nos séculos posteriores, escrevem Linda Heywood e John Thornton.

A liberdade abriu passo ao êxito de alguns antigos escravos angolanos. Como Anthony Johnson, grande proprietário de terras em Virginia. Ou de António, “O Angolano”, homem livre e muito próximo do governador do chamado Delaware sueco.

Para a História ficou também a saga de John Pedro, um nobre do reino do Congo que acabou por ser executado nos finais do século XVII, depois de participar numa rebelião falhada contra um governador anti-católico. Os seus descendentes em Virginia “provavelmente tornaram-se na família Petross, que contou com pessoas proeminentes”, lê-se na investigação de Linda Heywood e John Thornton.

Um dos escravos angolanos que fez história no na então colónia chamava-se Anthony Fernando (ou Anthony Johnson) e era dono de plantações de milho na que hoje é a Chatham Square, uma das principais praças de Chinatown, na actual Manhattan, Nova Iorque.

O território foi ocupado pela primeira vez pelos holandeses. Quando chegaram à América do Norte, estabeleceram-se na boca do Rio Hudson. Nova Amesterdão, assim chamaram ao lugar onde também rapidamente chegaram escravos do Congo e do Dongo. A colónia crescia rapidamente e a necessidade de mão-de-obra escrava também. A cidade, que mais tarde seria tomada pelos ingleses e rebaptizada Nova Iorque, “concentrou a maior proporção de escravos das colónias da América do Norte”, cerca de 30% da população total, afirmam Linda Heywood e John Thornton.

Já no final do século XVII, a comunidade africana na cidade “parece ter consistido num grupo de casas construidas pelos escravos”, numa área perto das antigas Torres Gémeas do World Trade Center. 

A História Diluída


Excepção na História da escravatura norte-americana, os primeiros grupos de escravos chegados à América do Norte, a partir de 1619, em certa medida gozaram de privilégios posteriormente suprimidos. Muitos deles chegaram até a casar-se com homens e mulheres de origem europeia.

E é aqui que começa, de verdade, a história de Joe Mozingo. Em 2010, confrontado com a possibilidade ser descendente de africanos (“eu, branco e de olhos azuis”, escreveria depois), o jornalista resolveu escavar a origem do nome paterno. Viajou por vários estados do país, contactou famílias homónimas. E confirmou que o antepassado de quem herdou o nome chegou aos EUA em 1644. Não da Itália ou da França, como pensava, mas do longínquo Reino do Congo. Chamava-se Eduardo Mozingo e, já homem livre, comprou terras e casou-se com uma mulher britânica. Geração após geração, a cor da pele foi-se clareando e a memória do passado africano foi sendo enterrada.

Se os Mozingo se tornaram icónicos, muito por culpa do livro de Joe, “The Fiddler on Pantico Run: An African Warrior, His White Descendants, A Search for Family”, a verdade é que a “diluição propositada” da herança genética e histórica dos africanos nos EUA parece ser algo comum, sobretudo entre as famílias sem traços africanos evidentes. Em entrevista por e-mail à Austral, Joe Mozingo atribuiu essa postura a uma estratégia de “sobrevivência”. “Naqueles tempos, se uma pessoa pudesse passar por branca, as suas crianças teriam menos probabilidades de serem escravizadas. Seriam cidadãos com trabalhos e direito a votar, e não viveriam com medo. À medida que as famílias esqueciam as suas verdadeiras raízes, elas simplesmente pensavam que eram brancas. E dado o racismo que se vivia, faziam questão de não ser questionados sobre esse tema”. No fundo, resume, “a natureza brutal da escravatura apagou essas histórias”.

Enquanto, por um lado, as raízes africanas de muitos norte-americanos são relegadas para o esquecimento, por outro, há quem se interesse em saber, de uma vez por todas, de onde veio. Nos EUA, são várias as páginas de internet que prestam o serviço de “rastreamento” genético. Em lineages.com, por exemplo, por quantias que vão dos 75 aos 4 mil e 500 dólares, os curiosos podem conhecer quem eram os donos dos seus familiares quando estes eram escravos, ou “descobrir onde, em África, viviam esses antepassados.” “Alguns destes testes são uma farsa”, alerta Joe Mozingo. “Os investigadores não pesquisaram a fundo os povos africanos para saber com quem os afro-americanos podem estar ligados”.

Quantas Angolas há no mundo?

A herança dos escravos da actual Angola nos EUA não se resume só a pessoas, famílias e genes. Está um pouco por todo o lado. Em Louisiana, por exemplo, come-se o “ngombo”, comida que, como o nome diz, é à base de quiabos, e parece-se de alguma forma ao calulu e a pratos típicos de outras partes de África.

Quando abrimos o mapa do país, as surpresas multiplicam-se. Angola dá nome a várias comunidades norte-americanas actuais. Uma rápida pesquisa no Censo de Áreas Urbanas dos EUA (2010), leva-nos, numa viagem anacrónica, a Angola no estado de Indiana; ou a Angola em Nova Iorque. Esta última assim chamada porque, contam, durante o século XIX, a comunidade ali residente apoiava os missionários de uma sociedade religiosa que trabalhava em… Angola. A história fica mais curiosa quando nos damos conta que, afinal, Wilis Carrier, o inventor do ar condicionado, nasceu em Angola. A de Nova Iorque, claro. Angola, o país, agradece.

Outras Angolas acabaram por desaparecer do mapa, mas não da História dos EUA. Por volta de 1656, contam os investigadores Linda Heywood e John Thornton, um escravo livre fundou em Dorchester, perto de Boston, uma comunidade chamada Angola. E em 1667, John Johnson comprou um terreno de 18 hectares em Chesapake Bay, aos quais também chamou Angola. O lugar para onde ele e outros afro-americanos livres se mudaram mais tarde, em Sussex County (Delaware), ainda hoje se chama Angola Neck.

No entanto, uma das “Angolas” mais famosas dos EUA fica no Louisiana, onde uma antiga plantação alimentada por mão-de-obra escrava angolana deu lugar e nome a uma prisão que já foi considerada “a mais sangrenta do sul” do país. A Louisiana State Penitentiary (nome oficial) foi criada no final do século XIX. Os primeiros prisioneiros foram alojados no velho quarteirão de escravos, “que mais tarde se tornou no Campo A”, conta o museu da prisão na sua página oficial. Ali estiveram detidos os chamados “três de Angola”, prisioneiros ligados aos movimentos sociais negros dos anos 60 que foram encarcerados durante décadas em celas solitárias. Sempre reclamaram inocência.

Nesta polissemia histórica, Angola é, também. terra sagrada. Recolhemo-nos em oração na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os famosos Mormons. 
Abrimos o livro sagrado escrito por Joseph Smith Jr no século XIX, e que define a América como a nova terra prometida. Capítulo 2, versículo 4: “E aconteceu que chegamos à cidade de Angola e tomamos posse da cidade e fizemos preparativos para defender-nos dos lamanitas. E aconteceu que fortificamos a cidade com todo o empenho; mas apesar de todas as nossas fortificações, os lamanitas caíram sobre nós e expulsaram-nos da cidade.” 

Segundo as escrituras, a tomada e queda de “Angola” terá acontecido em terra norte-americana entre 327 e 350 d.C. Tempo de Guerras. Onde fica esta cidade, e porque se chama Angola, só o Altíssimo sabe.

Artigo publicado originalmente na revista "Austral", em Novembro de 2015

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