Os cães e os ratos

“Desde o porto advinham-se, de um lado, as cordilheiras que conduzem aos páramos andinos no sopé da Serra Nevada de Santa Marta. Do outro lado, uns metros abaixo, as baías e as praias banhadas pelo Caribe colombiano”. Assim começa a história do barco “Rio Manzanares”, fio-condutor do livro “Mares de Cocaína”, da jornalista mexicana Ana Lília Pérez.


A viagem desafortunada do pesqueiro venezuelano é um bom exemplo do tráfico marítimo de cocaína da América do Sul para a Europa. A embarcação saiu da Colômbia em junho de 2008. Passou pelas Caraíbas, Antilhas e internou-se no Atlântico. A bordo, cinco homens, seis cães, incontáveis ratazanas e 2.258 kg de cocaína, propriedade do grupo colombiano “Los Piturros”. Rumo: costa ocidental africana.

O velho barco azul-enferrujado servia de “nodriza”, “nome que os traficantes e polícias dão às embarcações que carregam droga para transladá-la em alto mar para outros barcos mais pequenos”, explica Ana Lilia Pérez. Poucas semanas depois de zarpar, as autoridades europeias detetaram “Rio Manzanares” ao largo da Guiné-Conacri. Na madrugada de 26 de julho de 2008, tomaram o barco de assalto. Ao entrar no pesqueiro, os agentes confiscaram 80 fardos de droga com um valor de 70 milhões de euros. Os cinco homens foram detidos. A matilha também não teve um final feliz. Esfomeados, e com pouca comida a bordo, os marinheiros engordaram os cães com ratazanas e comeram-nos, pouco a pouco, ao longo da travessia. Os dois animais que sobreviveram estavam reservados para o último troço da viagem. 

Portugal de cara para o Atlântico

A “Operação Furacão” que pôs fim à saga de “Rio Manzanares” foi coordenada pelo Centro de Análise e de Operações contra o Narcotráfico Marítimo (MAOC-N, na sigla em inglês). A agência centraliza os esforços de sete países europeus no combate ao tráfico marítimo de drogas para a Europa. O Expresso solicitou uma entrevista à instituição, mas a “indisponibilidade de agenda do diretor” frustrou as tentativas.

A posição estratégica de Portugal, cara-a-cara com o Atlântico, fez de Lisboa uma sede natural para o MAOC-N. E é a mesma razão pela qual Portugal é, desde há bastantes anos, considerado por organismos internacionais como a Europol, DEA ou FBI uma das principais portas de entrada para a Europa da droga latino-americana. “A maior parte da cocaína que Sinaloa manda para Portugal é enviada via marítima em contentores desde a Colômbia e Venezuela”, comenta Michael Vigil, que admite a existência de “outras organizações da América do Sul que também usem Portugal como plataforma”. 


Só este ano, a PJ já fez pelo menos seis grandes apreensões em alto mar ou em pontos de transbordo, quase 6 toneladas em total. A 28 de janeiro, a PJ apreendeu 2,5 toneladas em alto mar, a 300 km da ilha de São Vicente, em Cabo Verde, na que foi, até agora, a operação mais expressiva. Desde o início do ano, as autoridades portuguesas, em coordenação com o MAOC-N e Europol detetaram embarcações similares ao largo dos Açores, na Madeira ou em “pleno Atlântico”, como se lê em alguns comunicados da PJ. 

Em entrevista ao Jornal de Notícias em março deste ano, o diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, Artur Vaz, confirmou um aumento importante das apreensões em Portugal desde 2016. Laurent Laniel, especialista do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (EMCDDA), confirma ao Expresso que Portugal “continua a ser um lugar importante de chegada e apreensão de droga”, mas avança que os portos nacionais começam a perder protagonismo no contexto europeu. “É certo que os estupefacientes continuam a chegar em aviões, barcos pequenos, veleiros, pesqueiros ou cruzeiros, mas as quantidades significativas de cocaína são agora transportadas nos contentores dos navios-cargueiro ”, especifica. Como tal, continua, “as grandes apreensões registam-se ultimamente nos grandes portos como Algeciras e Valência, em Espanha; Roterdão, na Holanda; Le Havre, na França; ou Hamburgo, na Alemanha”. No ano passado, exemplifica, “as autoridades apreenderam 50 toneladas de cocaína no porto de Antuérpia, na Bélgica. Foi um recorde de todos os tempos”. 

A Autoestrada 10 

Em “Mares de Cocaína”, uma das principais investigações jornalísticas sobre o tráfico marítimo de drogas, Ana Lilia Pérez estabelece a década de 80 como o início do transporte marítimo direto de cocaína entre a América do Sul e a Europa. De um lado do oceano estavam os colombianos; do outro, os armadores galegos.

O negócio floresceu e tornou-se mais complexo até que, em 2004, a pressão das autoridades espanholas obrigaram os traficantes a encontrar rotas alternativas. Açores e Canárias transformaram-se então em pontos de transbordo no Atlântico. Madeira, Cabo Verde e África Ocidental entrariam mais tarde na lista negra. 


Com pontos de apoio no meio do Atlântico, os colombianos e galegos inauguravam o primeiro troço da chamada “Autoestrada 10”, uma via imaginária que segue o paralelo com o mesmo número a norte do Equador. Sai da Colômbia e atravessa todo o mundo até às ilhas Marshall. Desta linha partem as rotas secundárias, por mar e terra, até Portugal e outros lugares na Europa. Quando entraram em cena no tráfico marítimo de cocaína, os mexicanos aproveitaram as mesmas rotas para “cruzar o charco”, expressão-gíria usada no México para as viagens que cruzam o Atlântico até à Europa. 

“Nos últimos anos, as rotas mantiveram-se basicamente as mesmas”, comenta Laurent Laniel. “A maior parte da cocaína é enviada da Colômbia, mas também do Brasil e do Equador. Começamos também a ver uma tendência crescente do Paraguai como país de envio”, diz o analista da EMCDDA, que aponta ainda uma mudança no norte de África: “Em particular Marrocos, Argélia, e estamos também a suspeitar da Líbia, estão a converter-se em armazéns de cocaína para posterior distribuição na Europa e também, talvez (não temos ainda muitos dados), para o Médio Oriente e Península Arábica”, comenta. 

Este panorama alarma analistas como Edgardo Buscaglia e instituições como a Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Delito, que lançou um alerta no ano passado sobre as atividades dos narcotraficantes na África Ocidental. O investigador dá o sinal de alarme: “Grupos que têm estado a cometer atos de terrorismo na Europa, incluindo o Estado Islâmico, têm presença no norte e ocidente de África e procuram financiamento para as suas atividades. Alguns carregamentos de droga que chegam a países como a República Centro-Africana ou Guiné Bissau são recebidos por essas células terroristas que transportam a cocaína até Marrocos, Líbia, e com isso financiam a sua atividade terrorista.” “Estes grupos penetram silenciosamente as fronteiras europeias com drogas e armas, e Portugal está na trincheira”, alerta. 


Colombianos por Mexicanos: o relevo 

Até finais dos anos 90, “o tráfico de cocaína para a Europa estava nas mãos dos colombianos que trabalhavam com os galegos”, conta ao Expresso o antigo diretor da Agência Antidroga mexicana, Samuel González. “Este domínio absoluto” continua, “caiu por terra com o desmantelamento dos poderosos cartéis de Medellin e de Cali”. 

A pulverização dos grandes grupos de narcotraficantes colombianos baralhou as cartas do narcotráfico na Colômbia, “fracionou o comércio de cocaína para a Europa” e mudou as regras do tráfico internacional, descreve o antigo responsável. A partir desse momento, escreve Sonia Alda Mejías, do Real Instituto Elcano, em Espanha, “inicia-se um período de disputas internas e de fragmentação na Colômbia, que foi habilmente aproveitado pelos cartéis mexicanos para negociar condições mais favoráveis com os produtores” – os próprios colombianos. Numa análise publicada no ano passado, a investigadora realça também que “esta situação de vulnerabilidade tornou possível aos mexicanos dominar a distribuição de cocaína” a partir de então. E até hoje. 

Nesses anos que mudaram a cara do narcotráfico internacional, também o México estava em ebulição. Em 2006, o governo de Felipe Calderón declarava a guerra aberta aos cartéis nacionais. Para “sobreviver”, os grandes grupos “começaram então a estabelecer uma série de alianças e a ocupar novos territórios”, conta o autor mexicano Ricardo Ravelo. “Com um mercado gigante meio abandonado pelos colombianos e um apetite voraz por cocaína”, conta Michael Vigil, a Europa tornou-se num torrão apetecível. 

Num primeiro momento, para dar o salto para o velho continente, Sinaloa apoiou-se em grupos colombianos que já atuavam em países como Espanha. As alianças entre mexicanos e colombianos eram antigas. Anos antes, narcotraficantes dos dois países uniram-se no comércio de cocaína para os Estados Unidos. Os colombianos vendem aos mexicanos; os mexicanos transportam-na ao outro lado da fronteira. 


“Na Europa, as relações tendem a ser algo diferentes”, diz-nos Angélica Durán, investigadora colombiana da Universidade de Massachusetts. “Além dessa relação entre grupos que vendem ou transportam, há também operações de risco partilhado” em que “tanto o lucro como o prejuízo são divididos entre as organizações que intervêm na operação, dependendo se a droga chega ao destino final ou é apreendida”, explica ao Expresso.

O risco parece valer a pena. No ano passado, o Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Delito informou que, em 2016, o cultivo do arbusto de coca aumentou 36% nos três grandes países produtores – Perú, Bolívia e Colômbia. Sozinhos, os cultivos colombianos representavam 70% da produção mundial. 

Esta “produção sem procedentes” (1.410 toneladas, segundo o Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência), refletiu-se já “no aumento do consumo” da droga na América do Norte e da Europa, lê-se no documento “Mudanças Recentes no Mercado da Cocaína na Europa”, que a instituição publicou em dezembro de 2018. “O crescente mercado de cocaína na Colômbia (…) sem dúvida aumentará o poder e a riqueza dos grupos de narcotraficantes da América, África e Europa”, vaticina. 

No Pacífico colombiano ou na fronteira da Colômbia com a Venezuela (país que começa a assumir protagonismo na região), “as oportunidades de negócio não param de crescer”, confirma Angélica Durán. “A desmobilização das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a partir de 2017, criou um espaço vazio no sistema de narcotráfico colombiano, que antes era controlado por este grupo”, diz a académica. Hoje, na Colômbia, enumera, “o narcotráfico é essencialmente controlado pelos antigos grupos guerrilheiros Exército de Libertação Nacional (ELN) e Exército Popular de Libertação (EPL), pelo Clã do Golfo e por algumas dissidências das FARC”.

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