Os 29 minutos que destruíram o movimento estudantil

Na tarde de 2 de outubro, estava agendada uma concentração na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco, para informar sobre os avanços do movimento. Na manhã desse dia, representantes da CNH e do governo tinham-se reunido para discutir os termos do diálogo público que os estudantes exigiam. Um dia antes, os soldados tinham também abandonado a Cidade Universitária. Sem avanços determinantes, os sinais pareciam positivos.



O ato começou às 5 horas. Numa varanda no terceiro andar do edifício Chihuahua, alinham-se os dirigentes do CNH. Dez mil pessoas ocupam a praça. Quando Adriana Corona chegou, encontrou o exército em força nas ruas circundantes. “Fiquei surpreendida com a quantidade de soldados, mas não lhe dei muita importância, de certa forma já estávamos habituados”, diz.

Elodia Gomez estava no meio da multidão. “Tudo decorria com tranquilidade, até que um helicóptero começou a sobrevoar a praça. Vimos então umas luzes de bengala verdes sobre a igreja de Santiago. Foi aí que o caos se desatou”. Um vídeo da época, recuperado no documentário “Matança de Tlatelolco”, mostra como os soldados avançam sobre as ruinas dos templos aztecas e rodeiam a igreja colonial. Num movimento de pinça encurralam os estudantes. Ouvem-se rajadas de metralhadora, tiros secos, gritos, tumulto. Atiradores furtivos disparam dos edifícios que rodeiam a Praça das Três Culturas. Em debandada, os manifestantes tropeçam nos mortos.

“O general que lidera a operação do exército é uma das primeiras pessoas assassinadas”, relata o historiador Sergio Aguayo no documentário da National Geographic. Sem comando, os soldados atuam de forma errática. Uns disparam; outros caem, mortos, atingidos pelos franco-atiradores. Alguns, ainda, protegem os manifestantes. “Atirem-se para o chão!”, gritam.

Na tribuna improvisada no terceiro piso, os dirigentes do CNH tentam fugir, mas são intercetados por militares à civil com luvas brancas na mão esquerda. É o Batalhão Olímpia. Detidos os dirigentes, começam também a disparar sobre a multidão.



O tiroteio terá durado precisos 29 minutos. No final, mais de duas mil pessoas são detidas na prisão de Lecumberri e no Campo Militar Nº1. Muitos seriam libertados dias depois; outros, apenas em 1970, ao abrigo de uma amnistia. Por volta das 8.30 da noite, debaixo da chuva, os corpos são levados em camiões militares. Até hoje, não se sabe quantas pessoas morreram em Tlatelolco. 29, disse o governo na época; centenas, talvez 400, garantem ainda hoje os sobreviventes

Na manhã seguinte, a Praça das Três Culturas aparece limpa e controlada pelo exército. A 12 de outubro, como previsto, o presidente Díaz Ordaz inaugura os Jogos Olímpicos. Na cerimónia de abertura, dezenas de pombas brancas são libertadas nos céus da Cidade do México, num apelo à paz.

Os papéis do general 

“Nunca esperámos que o governo reprimisse desta maneira, foi um choque tremendo”, afirma Adriana Corona. “O CNH dizia que o exército era o povo armado e sempre acreditou numa saída pacífica. Não tomou em conta o nível de autoritarismo, o fato de estarmos a dias das Olimpíadas e que para o governo a imagem externa era uma obsessão”, opina Joel Ortega.

No dia seguinte, Díaz Ordaz responsabiliza “estudantes radicais” de disparar sobre os seus companheiros e militares. Numa entrevista em 1977, repete as mesmas acusações e enche o peito: “Do que estou mais orgulhoso desses seis anos [de governo] é do ano de 1968, porque me permitiu salvar o país”.

A versão oficial demorou 30 anos a ser desmontada. Em 1999, Carlos Monsiváis e Julio Scherer publicam “Parte de Guerra”. O livro divulga as memórias que Marcelino García Barragán, Secretário de Defesa Nacional em 68, anotou sobre esse dia.

“Barragán expõe a enorme perversão do regime”, adjetiva Leonardo Figueiras em entrevista a JN História. Os papéis do general revelam, então, que no dia do massacre, o governo montou três operações em simultâneo, sem que nenhuma soubesse da outra. Enquanto o exército se posiciona nas ruas de Tlatelolco, um grupo de franco-atiradores afetos à Guarda Presidencial ocupa postos estratégicos nos edifícios que rodeiam a praça. Por seu turno, o chamado Batalhão Olímpia esconde-se em apartamentos do edifício Chihuahua, onde o CNH montaria a sua tribuna. Missão: emboscar os dirigentes estudantis na hora do caos.



Quando as luzes de bengala deram o sinal para avançar, um dos atiradores furtivos posicionado no edifício Chihuahua fez o primeiro disparo. Um ato premeditado que sustentou durante anos a alegada culpa dos estudantes, segundo Díaz Ordaz. No final dessa noite, o exército prende dois franco-atiradores. São libertados após um telefonema que os identifica como oficiais do Estado-Maior Presidencial. Apenas então o general Barragán se dá conta que os seus soldados caíram numa armadilha de Díaz Ordaz. Usados como carne-de-canhão, os militares foram alvejados e mortos pelos próprios companheiros.

O caminho para a democracia 
Fortemente debilitado depois de outubro, o movimento desarticula-se finalmente em dezembro de 68. Numa entrevista a Scielo, um dos principais dirigentes do CNH, Gilberto Guevara Niebla, reconhece que “Tlatelolco produziu uma enorme carga de ódio e ressentimento social” que empurrou os elementos mais radicais para uma guerrilha urbana entre 1971 e 1976.

Apesar deste “lado negro”, cinquenta anos depois os historiadores e sobreviventes concordam que os frenéticos 140 dias do movimento representaram um extraordinário ponto de inflexão no país. “De forma indireta, o protesto estudantil foi o responsável não só pela abertura democrática que marcou as décadas seguintes, mas também pela afirmação da mulher nos meios políticos e pela mudança radical da relação dos jovens com a família e com a autoridade”, resume à JN História a professora da UNAM, Carola García.

Sentado numa poltrona na sua casa nos edifícios da antiga Vila Olímpica, Joel Ortega fecha o ciclo: “‘El Búho’ [alcunha do dirigente estudantil Eduardo Valle], um dos melhores oradores do 68, disse uma vez no Zócalo: ‘Provámos a doçura da liberdade, e isso nunca se esquece’. É isto.” E sorri.

A revolta dos soldados 

JN História conversou com um antigo sargento no ativo em 68 sobre o papel dos militares no movimento estudantil. Cinquenta anos depois, e há muito afastado do meio castrense, prefere manter o anonimato. “É melhor…”. Nesses dias, “Alejandro Ciénega” tinha 24 anos. Estudava no Instituto Nacional de Rádio e Eletrónica e integrava o batalhão que “custodiava a Secretaria da Defesa Nacional”.

Alejandro conta que “muitos soldados não concordavam com o que eram obrigados a fazer”, o que provocou divisões inevitáveis. Certa vez, conta, “um batalhão inteiro do Campo Militar Nº1 recusou-se a saudar a bandeira, como protesto”. No seu caso, foi obrigado a tomar partido. “Um dia, o nosso comandante ordenou que quem não concordasse com as ações do governo, desse três passos em frente”, relata. Com “algum receio”, Alejandro e “praticamente metade” dos seus companheiros avançaram. “Não podia ter tomado outra decisão. Quase todos éramos estudantes, os nossos colegas ou familiares andavam nas ruas, eu próprio cheguei a manifestar-me na marcha em que os tanques avançaram no Zócalo [27 de agosto de 1968].”



A 2 de outubro, Alejandro estava aquartelado e só soube do que aconteceu no dia seguinte. Mas algo lhe chamou a atenção: “camiões militares iam e vinham constantemente e estacionavam-se nuns barrancos profundos do Campo Militar.” Mais tarde, um amigo do Batalhão de Transportes Militares acabou por revelar-lhe que “estavam a depositar ali os corpos dos estudantes.” “Um dia depois, entrou maquinaria pesada e cobriu as valas”, conta.

O destino das vítimas de Tlatelolco é uma das incógnitas ainda por resolver. Adriana Corona conta que, “em alguns casos, as autoridades entregaram os restos mortais às famílias, com a condição de que não revelassem as causas reais da morte”. Durante anos, prevaleceu a ideia de que foram incinerados no Campo Militar Nº 1, mas em 1998 surgiu outra versão. “Um antigo piloto da Força Aérea ligou para um programa de rádio sobre os 30 anos de Tlatelolco e garantiu que ele próprio tinha transportado corpos que foram atirados ao mar, no Golfo do México”, conta Adriana.

A Justiça que não chega 

Em 2006, um Tribunal Especial para os Movimentos Sociais e Políticos do Passado condenou a prisão domiciliar Luis Echeverría, por crimes de genocídio cometidos em 1968, como Secretário de Governação. A decisão seria revogada em 2009 por um Tribunal Federal.

A breve prisão deste responsável não satisfaz a necessidade de justiça que ainda hoje muitos sobreviventes exigem. “Queremos saber os nomes dos responsáveis pelas matanças, desaparecimentos, torturas e detenções, só isso fechará a ferida aberta”, defende Leonardo Figueiras. Adriana Corona concorda, e exige ainda o reconhecimento do massacre como “um crime do Estado priista” e a “abertura pública de todos os arquivos da época”, muitos deles “classificados por 70 anos!”

Em sentido contrário, Joel Ortega defende que é hora de deixar “essa nostalgia a que muitos continuam presos”. A ideia, plasmada no seu recente livro “Adeus ao 68”, está a causar polémica entre os antigos companheiros de luta. Mas Joel é perentório: “O 68 só tem sentido se o vincularmos ao momento atual. Há três meses, o povo votou em massa por uma mudança que, pensa, representa o fim do regime do PRI. No entanto, quase todo o novo governo tem origem na família priista e carrega a tradição dessa máquina que nos reprimiu há 50 anos. Temos que estar atentos.”

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